Enquanto Hollywood insiste em reciclar cenários de crise na Casa Branca — do presidente sitiado ao governo traído por forças internas —, “G20” é uma subversão estética e simbólica de um imaginário saturado. Mas em vez de subverter pela forma, prefere provocar pelo conteúdo simbólico: o que acontece quando a líder do mundo livre, em plena convulsão institucional, é uma mulher negra? Essa premissa, por si só, já perturba o status quo. A imagem de Viola Davis — fria, firme, monumental — sentada na cadeira mais poderosa do Ocidente, funciona como um deslocamento semântico e histórico, capaz de produzir mais ruído do que qualquer explosão digital.
Viola Davis não atua apenas — ela impõe presença. Sua performance não se ancora em arroubos dramáticos, mas na contenção que só grandes intérpretes dominam. Ela interpreta uma presidente acuada não pela fraqueza, mas pela lucidez diante de um sistema que se desfaz de dentro para fora. Sua liderança é crível não por carregar um discurso empoderado, mas por encarnar uma racionalidade política que desafia tanto a narrativa típica de heroísmo masculino quanto o arquétipo da mulher emocionalmente volátil. Trata-se, enfim, de uma presença que reconfigura o imaginário político sem precisar verbalizar isso. A simbologia basta.
Mesmo assim, a ambição da proposta esbarra na hesitação do roteiro em assumir riscos narrativos equivalentes aos simbólicos. A trama opta por estruturar-se sobre pilares já desgastados: rebeldes de ideologia genérica, reviravoltas previsíveis, ataques orquestrados e um grupo de elite armado com gadgets futuristas e frases de efeito. É como se o filme tivesse medo de mergulhar nas implicações reais de sua premissa e preferisse refugiar-se na familiaridade dos clichês de ação. Isso não anula seu valor simbólico, mas o limita.
O antagonista vivido por Antony Starr representa, talvez, o ponto mais fascinante e ambivalente do enredo. Conhecido por interpretar figuras de poder corrupto, Starr aqui repete o gesto, mas com nuances interessantes. Seu personagem não é apenas um vilão funcional; ele encarna uma visão distorcida de justiça, de patriotismo e de revanche social que ressoa perigosamente com discursos reais do extremismo contemporâneo. Há nele algo de carismático e aterrador, como se o roteiro reconhecesse — ainda que superficialmente — o apelo sedutor da barbárie quando embalada como restauração da ordem. Sua performance, inquieta e intensa, confere à narrativa um contraponto que quase suplanta a fragilidade das motivações políticas do texto.
E é nesse ponto que o filme revela uma contradição fundamental: ele deseja ser politizado sem ser político, provocar sem se comprometer. O subtexto envolvendo criptomoedas, segurança privatizada e colapsos institucionais oferece uma oportunidade rica de análise — afinal, não estamos apenas falando de um golpe de Estado, mas de uma reconfiguração total do poder como mercadoria. No entanto, essas questões são abordadas como pano de fundo, como se o filme tivesse medo de soar panfletário ou de alienar seu público com densidade crítica. O resultado é uma narrativa que ensaia reflexões, mas recua antes de formular qualquer discurso coerente.
O filme investe em uma estética impecável, quase publicitária. Cores filtradas, iluminação dramática, cenários limpos demais para um país em colapso. Há uma dissonância entre a forma e o conteúdo que enfraquece o impacto pretendido. Até os traços de realismo — como o emagrecimento abrupto de Anthony Anderson, que poderia sinalizar estresse, trauma ou doença — são deixados sem explicação, funcionando mais como recurso visual do que construção dramática. A narrativa, que poderia se alimentar dessas fissuras, parece mais interessada em manter a ilusão de controle do que em explorar o caos real de uma nação fraturada.
Ainda assim, há momentos em que o filme brilha — não por ousadia técnica, mas por tensão simbólica. Em uma cena em particular, a presidente caminha solitária por um corredor esvaziado de aliados e certezas. A câmera acompanha de perto, mas nunca a toca. É nesse espaço de isolamento e responsabilidade que o filme encontra seu tom mais verdadeiro: quando desiste de ser espetáculo e se permite ser desconforto. A força da protagonista está menos em sua capacidade de ordenar ataques aéreos do que em permanecer inabalável enquanto tudo ao redor se fragmenta — inclusive as próprias estruturas do Estado que jurou proteger.
O filme não oferece catarse — apenas ambiguidade. Seu gesto mais audacioso não está nas explosões, mas no fato de ter colocado uma mulher negra no centro do poder, e feito dela o símbolo não de um futuro utópico, mas de um presente irremediavelmente tensionado. Há algo de profundamente revelador na recepção dividida que a obra provoca. Talvez porque ela não apenas expõe uma ferida cultural, mas insiste em cutucá-la — sem anestesia, sem resolução.
E se falha ao não aprofundar as questões que levanta, ao menos acerta ao provocar a pergunta que muitos prefeririam evitar: por que ainda nos incomoda tanto ver o poder encarnado por quem, historicamente, só pôde assisti-lo de longe?
★★★★★★★★★★