Nas vielas abafadas de uma Nova York setentista, não são os gritos nem os tiros que mais ecoam, mas sim o silêncio cortante de mulheres que cansaram de esperar por permissão. “Rainhas do Crime” nasce dessa tensão: um campo de batalha onde as protagonistas não imploram por espaço — elas o reivindicam com sangue e cálculo. Adaptado da minissérie da Vertigo e dirigido por Andrea Berloff, o longa se anuncia como um gesto audacioso de inversão narrativa: três esposas de mafiosos, relegadas à invisibilidade enquanto os maridos comandavam o submundo, decidem não apenas sobreviver à ausência dos homens, mas tomar de assalto o poder que eles deixaram para trás. No papel, uma promessa de desconstrução radical do arquétipo masculino no gênero criminal. Na prática, um conflito entre ambição estética e solidez dramática.
O trio central, vivido por Melissa McCarthy, Elisabeth Moss e Tiffany Haddish, surge como uma força gravitacional que poderia sustentar o filme inteiro — se lhes fosse permitido. McCarthy abandona qualquer resquício de caricatura para revelar um instinto predador por trás da fachada de dona de casa. Moss encarna com precisão perturbadora a curva descendente entre vulnerabilidade e psicopatia. E Haddish, em clara ruptura com seu histórico cômico, encarna uma mulher que confunde poder com controle absoluto, deixando claro que não há inocentes nessa guerra. Mas apesar de performances que ressoam com intensidade, suas personagens são frequentemente traídas por um roteiro que as esvazia em favor de choques vazios e dilemas morais telegrafados.
É como se o filme hesitasse diante da complexidade que inicialmente prometeu abraçar. Em vez de explorar a ambiguidade de mulheres que cruzam fronteiras éticas para sobreviver — ou para dominar —, “Rainhas do Crime” oscila entre o didatismo de slogans feministas e a estrutura engessada de um thriller convencional. Os conflitos, que deveriam dilacerar o espectador por dentro, são expostos de forma abrupta, quase esquemática, como se a narrativa não confiasse na inteligência emocional de seu público. O embate entre as personagens de Haddish e McCarthy, por exemplo, que poderia escancarar a tensão entre lealdade e ambição, se resolve num arco sem profundidade, apressado demais para gerar qualquer catarse.
Ainda assim, Berloff demonstra fôlego visual e uma clara intenção autoral. A reconstrução da Nova York dos anos 1970 vai além do figurino e dos carros antigos: há um cuidado com a paleta de cores, com o jogo de sombras e com a construção espacial dos ambientes, que sugere uma diretora atenta aos detalhes e às atmosferas. A violência, quando irrompe, é seca e quase cirúrgica — um reflexo da lógica empresarial que essas mulheres adotam ao entrarem no jogo. Porém, o virtuosismo técnico esbarra na ausência de continuidade narrativa. A montagem salta entre cenas como quem vira páginas com pressa, desperdiçando transições que deveriam aprofundar as escolhas das personagens. Subtramas brotam e murcham sem aviso. Algumas decisões, como assassinatos motivados por impulsos mal construídos, soam mais como exigências do roteiro do que desdobramentos orgânicos da trama.
O maior obstáculo, no entanto, talvez seja a tentativa de abarcar discursos demais num mesmo corpo fílmico. Ao flertar com o drama existencial, a sátira social e o manifesto feminista, o longa se fragmenta, perdendo a precisão que exige uma história de submundo. A comparação com “As Viúvas”, de Steve McQueen, torna-se inevitável — e cruel. Enquanto aquele filme costura com sobriedade a dor, o luto e a instrumentalização da violência por mulheres em situação-limite, “Rainhas do Crime” se contenta em acenar para esses temas sem de fato escavá-los. A urgência da representação feminina no crime não pode ser reduzida a um gesto de ocupação simbólica. É necessário compreendê-la, desconstruí-la e reconstituí-la a partir de novas lentes, algo que o filme sugere, mas não executa com consistência.
Resta uma obra que oscila entre lampejos de potência e lacunas gritantes. Há energia, há estética, há atuações que pedem espaço para respirar — mas o filme parece sufocá-las sob o peso de uma narrativa que quer provar demais e sentir de menos. A violência que vemos na tela tem impacto, mas carece de densidade emocional. O empoderamento prometido se transforma em performance, descolado das contradições reais que moldam a trajetória de mulheres que decidem jogar sujo num universo criado por homens. O que poderia ser uma reconfiguração visceral do gênero mafioso acaba se acomodando na superfície de um discurso. E é justamente aí que a revolução se esvai: não na falta de intenção, mas na ausência de coragem para levar essa intenção até suas últimas consequências.
★★★★★★★★★★