Filme considerado pela ciência um dos mais perturbadores de todos os tempos chegou ao Prime Video Divulgação / 2929 Productions

Filme considerado pela ciência um dos mais perturbadores de todos os tempos chegou ao Prime Video

Na arquitetura silenciosa das imagens, há filmes que se recusam a explicar, preferindo sussurrar suas verdades pela sugestão do desamparo e pelo eco daquilo que não volta. O gesto de adaptar um romance para o cinema é, mais do que uma transposição de linguagem, uma negação da origem literária — não por desprezo, mas por necessidade estética. “A Estrada”, na direção de John Hillcoat, recusa o conforto do texto e finca os pés na aridez visual de um mundo despido de futuro. Mesmo sem ter se embrenhado a fundo na ficção de Cormac McCarthy, é impossível não perceber ali um universo íntegro, inteiro na desilusão que carrega. Hillcoat não tenta suavizar o niilismo do autor: entrega-o como espólio cru de um tempo onde o imaginário da ruína venceu todas as formas de esperança.

Não há necessidade de um cataclismo nomeado. A destruição que perpassa cada quadro é absoluta justamente porque carece de causa: ela já está consumada. As armas que restaram não salvam, só prolongam o medo. As paisagens, recobertas de cinza, parecem suspensas entre o ontem que desapareceu e um amanhã que jamais virá. A montagem fragmentada intercala momentos de memória — uma mulher grávida, uma casa aquecida por afeto — com a travessia brutal de um pai e um filho em marcha por uma terra que deixou de abrigar, e agora apenas repele. A ausência de explicações abre espaço para a inquietação: e se nada justificar for, ainda assim o colapso não cessa de avançar?

Nesse percurso, o instinto protetor do pai não é reação ao colapso, mas extensão de um sentimento anterior, talvez a última centelha de humanidade em combustão lenta. Viggo Mortensen exprime com contenção um homem esvaziado pelo horror, mas ainda responsável por carregar um outro corpo, uma outra alma. A atuação dilui as fronteiras entre ternura e desespero, fazendo de cada gesto um ato de resistência a um tempo que não oferece refúgio. Ao lado dele, Kodi Smit-McPhee compõe um garoto que já nasceu sem o privilégio da inocência, movido por uma coragem desavisada, como se instintivamente soubesse que não há salvação prometida, apenas o fardo de continuar andando.

A mulher vivida por Charlize Theron, figura que existe sobretudo como memória — como vestígio de um afeto antes do colapso —, tensiona ainda mais o filme ao evocar a ausência como trauma. Não se trata de uma contraposição de forças, mas da presença espectral de tudo que foi perdido. Na fotografia de Javier Aguirresarobe, os campos de cinza não são paisagem: são diagnóstico. O apocalipse aqui não é um evento, mas um estado de permanência. Hillcoat, ao adaptar McCarthy, não busca dar sentido — apenas reproduz a vertigem de um mundo onde sentido se tornou obsoleto.

Há, no entanto, uma camada que escapa à miséria generalizada, e ela reside justamente na relação entre esses dois corpos errantes: pai e filho. Não há diálogo moralista, nem esperança forçada; há apenas a continuidade do gesto, a repetição do passo, o ritual de tentar alimentar-se e não morrer. No movimento contínuo, está a resposta que o filme não dá em palavras. E se o final abre espaço para algo remotamente parecido com consolo, não é porque há redenção, mas porque o olhar do espectador já foi corroído o suficiente para aceitar migalhas como milagre.

Ao saber que Hillcoat empreende agora a adaptação de “Meridiano de Sangue“, outra fábula cruel saída das páginas de McCarthy, não se trata de mera curiosidade, mas de uma urgência. Porque há algo nesses filmes que não apenas narra o fim, mas nos obriga a encará-lo sem artifícios. É esse tipo de experiência que, ao nos deixar em pedaços, tem o poder raro de nos reconectar — não com o conforto, mas com a lucidez.

Filme: A Estrada
Diretor: John Hillcoat
Ano: 2009
Gênero: Aventura/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★