Seria plausível imaginar que um presídio de segurança máxima abrigue a centelha de um renascimento subjetivo? Para muitos, a ideia pareceria absurda. Ainda assim, por uma lógica que inverte expectativas e desafia estigmas, é nesse cenário de concreto e grades que pulsa uma rara efervescência emocional. “Sing Sing”, dirigido por Greg Kwedar, não busca comover pela exceção, mas provocar pela constatação: ali, entre homens cuja liberdade foi suspendida, o teatro torna-se um campo de batalha interior — brutal e redentor — onde o que se disputa não é a liberdade física, mas a dignidade.
A gênese do filme encontra-se no artigo “The Sing Sing Follies”, de John H. Richardson, publicado na “Esquire” em 2005. Mas Kwedar não se limita a adaptá-lo. Ele regressa ao coração da penitenciária de Ossining, mais conhecida como Sing Sing, para captar, com precisão quase documental, as contradições de um projeto que transforma criminosos em criadores. O Rehabilitating Through the Arts (RTA), longe de soar como uma política pública genérica, emerge como um contrapeso ético à lógica punitivista. Ao lado do roteirista Clint Bentley, o diretor investiga os limites dessa transformação, não como salvador de almas, mas como observador do esforço humano em reconstruir significados onde a sociedade decretou ruína.
A filosofia de São Tomás de Aquino oferece aqui um subtexto filosófico de potência insuspeita: sem honra, o homem não pode aspirar à felicidade. Kwedar compreende isso e escolhe a contenção como estética. Sua câmera recusa o protagonismo, preferindo escutar, auscultar, acompanhar. Ao registrar os internos de Sing Sing em sua travessia cênica, filma como quem respeita e compreende que cada gesto, por mais trivial que pareça, carrega o peso do que se tenta resgatar. Ao lado do veterano professor Brent Buell (interpretado com notável sobriedade por Paul Raci), o espectador é convocado a abandonar o papel de voyeur e assumir, ainda que por instantes, a escuta ativa de quem compartilha o chão da prisão.
É no embate entre Divine G e Divine Eye que a narrativa atinge sua combustão máxima. Interpretado por Colman Domingo, o primeiro encarna um dramaturgo em potência, dotado de carisma e angústia, que propõe montar “Rei Lear”. Já o segundo, vivido por Clarence Maclin, defende que talvez seja hora de rir, não de sofrer. Buell intervém propondo um roteiro híbrido e delirante, que mistura Egito Antigo, faroeste e tensão psicológica. No palco improvisado, esses homens descobrem que representar é um verbo que rima com existir. A encenação torna-se ritual e, com ela, os impulsos mais primitivos e os desejos mais reprimidos encontram forma — não para serem perdoados, mas para serem compreendidos.
A trajetória do filme, marcada por exclusão nas salas comerciais e tímida recepção até seu acesso via streaming, configura um paradoxo que o próprio roteiro talvez antecipasse: o mundo, lá fora, ainda prefere as narrativas de prisão cheias de sangue, crueldade e estereótipos. “Sing Sing” rejeita todos esses atalhos fáceis. Sua força reside justamente no que ele silencia: não há torturadores, não há sexo forçado, não há sangue derramado. Há silêncio, escuta, tentativa. Há homens — não heróis nem monstros — que ainda tropeçam nas ruínas de seus atos, mas que agora ousam vislumbrar outra possibilidade de presença.
O cinema que se faz necessário, no fim, é o que questiona nossas certezas mais cômodas. Ao entrar em Sing Sing, não como turistas morais, mas como espectadores responsáveis, descobrimos que talvez não haja cadeia mais implacável do que a que construímos em torno das narrativas que escolhemos repetir. O filme de Kwedar não abre portas nem redime biografias — ele desloca o eixo. E ao fazê-lo, obriga-nos a repensar que tipo de liberdade realmente importa.
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