Não é o sexo, nem o quarto de hotel, tampouco o suposto escândalo de uma mulher madura contratando um acompanhante que sustenta a força de “Boa Sorte, Leo Grande”. O que impulsiona o filme, na verdade, é a coragem de lidar com um tipo de intimidade que raramente encontra espaço nas narrativas contemporâneas: aquela que exige o desmonte de décadas de silêncio interior. Sob a direção sensível e precisa de Sophie Hyde, o longa não apenas desafia as fórmulas desgastadas da comédia romântica, como também propõe um exercício de escuta — íntima, paciente, e quase sempre desconfortável.
A protagonista Nancy, interpretada com rara honestidade por Emma Thompson, não busca um romance, nem um afago masculino que a salve. O que ela procura — embora inicialmente não saiba nomear — é um recomeço. Uma mulher que, por anos, habitou o mundo através das lentes alheias — seja da moral religiosa, da expectativa matrimonial ou da função docente — decide, finalmente, ocupar o próprio corpo como território legítimo de prazer e autonomia. Seu encontro com Leo, o acompanhante vivido com refinamento por Daryl McCormack, é menos uma transação e mais uma travessia. Não se trata de libertinagem tardia, mas de um ritual de desaprendizagem: desaprender a vergonha, a culpa, o pudor herdado.
A força narrativa do filme repousa na recusa em diluir a complexidade dos afetos. Em um cenário único — o quarto de hotel — cada diálogo transforma-se em bisturi, abrindo camadas da psique de Nancy que ela mesma temia explorar. As perguntas que ela dirige a Leo, ora ingênuas, ora desconcertantes, revelam muito mais sobre o próprio abismo emocional que carrega do que sobre o profissional diante dela. E, ao contrário do que se poderia esperar de um filme com essa premissa, a tensão não está no desejo sexual não consumado ou em algum segredo revelado, mas na lenta, quase imperceptível reconstrução de uma identidade esquecida.
Emma Thompson entrega uma atuação que não se exibe — ela não atua para convencer, mas para revelar. Ao despir-se, literalmente, diante da câmera, ela não reivindica coragem, mas dignidade. É nesse gesto que o filme alcança seu ponto mais radical: tratar o corpo envelhecido não como metáfora da decadência, mas como espaço legítimo de reinvenção. A nudez de Nancy não é um ato performático; é uma recusa definitiva às imagens normativas que moldaram sua trajetória. E quando ela, finalmente, se contempla no espelho, sem filtros, sem correções, sem desculpas, o que se assiste não é um clímax — é um renascimento.
O roteiro, ainda que em seus minutos finais ensaie momentos mais explicativos, escapa da armadilha de oferecer respostas fáceis ou encerrar conflitos com moralidade. Ao contrário, o filme sabe que certas feridas não se resolvem — elas se compreendem. E é essa compreensão que permite ao espectador perceber que não está diante de uma história de amor, mas de uma história de retorno: retorno ao corpo, à escuta de si, à liberdade de não saber, de tentar, de errar.
A mise-en-scène, deliberadamente contida, transforma o quarto em extensão psíquica dos personagens. Cada mudança de iluminação, cada deslocamento sutil no espaço físico sinaliza alterações no território emocional de Nancy. Não há fuga pela estética; há fidelidade à vulnerabilidade. Mesmo as passagens de humor, que surgem com inteligência e leveza, jamais servem para aliviar a densidade da experiência — antes, acentuam sua humanidade.
Em um tempo em que a sexualidade é debatida entre hashtags e polarizações ideológicas, “Boa Sorte, Leo Grande” opta por algo mais difícil: o silêncio necessário para escutar o que resta depois que o ruído das expectativas sociais se cala. É um filme que olha nos olhos do espectador e pergunta: quando foi a última vez que você se sentiu inteiro? E essa pergunta — tão simples e tão brutal — ecoa muito além dos créditos finais.
★★★★★★★★★★