Para quem ama Bridgerton: nova série com diálogos afiados e roteiro sagaz é a queridinha do momento, na Netflix Divulgação / Netflix

Para quem ama Bridgerton: nova série com diálogos afiados e roteiro sagaz é a queridinha do momento, na Netflix

Num rincão exuberante da Madrid do fim do século 19, onde os salões ecoam passos coreografados e as janelas abertas revelam jardins tão vívidos quanto quadros impressionistas, uma série espanhola ousa reinventar o romance histórico com um gesto desafiador: o riso. Longe de se submeter às convenções rígidas que definem o gênero, “A Dama de Companhia” opta por uma rota mais instigante — a da sátira afiada, embebida em autoconfiança e liberdade criativa. No centro desse jogo de espelhos está Elena, uma casamenteira cuja sagacidade não se limita aos bastidores da aristocracia. Ela domina a narrativa com a mesma destreza com que orquestra os encontros amorosos de sua jovem protegida, Cristina — e, de quebra, subverte o próprio papel de protagonista. O espectador, longe de ser um observador passivo, é constantemente convidado a pactuar com sua ironia contagiante.

A série se estabelece como um manifesto contra a rigidez narrativa, desmantelando os pilares do drama de época com requinte e insolência. Ainda que herde a estrutura dos romances visuais, como “Bridgerton”, ela ultrapassa suas referências anglófilas ao trocar o glamour pasteurizado por uma estética escancaradamente teatral e deliberadamente anacrônica. Os figurinos são o primeiro indício dessa proposta: tonalidades como coral, turquesa e verde chartreuse convivem sem culpa com cortes irreais, criando um desfile de exuberância que, ao invés de buscar verossimilhança histórica, aposta numa fantasia cuidadosamente construída para ser deliciosamente excessiva. Nas festas campestres e jantares opulentos — que mais lembram rituais hedonistas do que reuniões sociais —, a mise-en-scène transforma o prazer estético em princípio narrativo. Tudo vibra em chave de exagero, mas nada é gratuito.

Essa recusa à fidelidade histórica não é um descuido: é uma declaração estética e política. Ao abolir a presença das classes subalternas e recortar a aristocracia em moldes quase mitológicos, a série constrói um universo onde o real não tem vez — e tampouco faz falta. Trata-se de uma fantasia assumida, um palco onde os dilemas são caricatos, as intrigas saborosas, e a complexidade social é substituída por uma estética do artifício. Essa escolha, embora possa gerar incômodo a olhares acostumados à densidade realista, é parte do pacto que a produção propõe: o de mergulhar num mundo onde a leveza é uma forma de inteligência, e a ironia, um instrumento de resistência narrativa.

No coração dessa invenção pulsante está a quebra sistemática da quarta parede. Elena, ao se dirigir diretamente ao público, não apenas rompe a ilusão da narrativa clássica — ela a ridiculariza, desmonta suas engrenagens e propõe outra forma de contar, mais consciente e transgressora. Sua presença não se limita à trama: ela é arquiteta, comentarista e sabotadora, introduzindo uma camada metalinguística que transforma cada episódio num exercício de autoanálise do próprio gênero. Esse mecanismo, que poderia se tornar repetitivo, é mantido vivo pela versatilidade da linguagem, pelo humor seco que pontua os diálogos e pelas reviravoltas que desestabilizam qualquer tentativa de previsibilidade. A série não apenas joga com as expectativas — ela se diverte ao frustrá-las.

O elenco sustenta com vigor essa proposta de pluralidade estética e tonal. Nadia de Santiago, no papel de Elena, escapa de qualquer leitura unidimensional: sua performance equilibra o sarcasmo meticuloso com uma profundidade emocional que nunca é explicitada, mas sempre intuída. Ao seu redor, um conjunto de personagens femininas se desenrola com nuances que desafiam o arquétipo. As três irmãs sob sua tutela representam, cada uma a seu modo, facetas distintas de uma feminilidade em disputa — da rebeldia silenciosa da caçula trajada de preto à ingenuidade calculada da mais velha, há uma orquestra emocional em jogo, onde cada nota importa. A série não se contenta com estereótipos; ela os utiliza como trampolim para algo mais sofisticado.

Mais do que uma paródia, a produção é um exercício de reimaginação narrativa. Ao incorporar elementos da “screwball comedy”, inserir referências culturais inesperadas e fazer uso irreverente de trilhas sonoras compostas por versões clássicas de hits das décadas de 1970 e 1980, a série constrói uma identidade própria — híbrida, provocadora, deliciosamente inconformada. Sua força não está apenas no que diz, mas na forma como diz: um gesto teatral que desafia o espectador a abandonar a lógica linear, rendendo-se a uma experiência onde forma e conteúdo se contaminam mutuamente. Não é uma série para quem busca conforto narrativo. É para quem deseja ser surpreendido.

A produção se revela, ao fim, como uma declaração de amor à ficção — não àquela que se prende ao rigor do passado, mas à que o reinventa com destemor. Ao transformar a tradição em matéria-prima para a irreverência, ao recusar o sentimentalismo fácil em favor do comentário mordaz, essa série espanhola estabelece um novo parâmetro para o entretenimento histórico: não o de reproduzir, mas o de transgredir com elegância. Em tempos em que tantas narrativas se contentam em ser belas, ela ousa ser astuta. E é justamente essa audácia que a eleva — não apenas como alternativa, mas como reinvenção radical do que esperamos de uma história ambientada no passado. Uma experiência, enfim, tão sofisticada quanto subversiva.

Filme: A Dama de Companhia
Diretor: Gema R. Neira e María José Rustarazo
Ano: 2025
Gênero: Comédia/História/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★