Suspense francês com uma das reviravoltas mais inacreditáveis do cinema, na Netflix Divulgação / Netflix

Suspense francês com uma das reviravoltas mais inacreditáveis do cinema, na Netflix

A primeira imagem de “O Paciente Perdido” não pede licença: uma casa, um massacre, o silêncio que grita. É com essa violência seca — sem preâmbulo, sem aviso — que o filme francês nos arremessa em um abismo que não é apenas narrativo, mas existencial. A tragédia familiar que se anuncia nos primeiros minutos não serve como gancho sensacionalista, mas como um rompimento absoluto: a partir dali, o tempo se torna suspenso, a memória falha e a realidade começa a se esfacelar. Thomas, o único que não morreu, acorda três anos depois de um coma. O corpo desperta, mas a alma permanece enterrada entre fragmentos de lembranças incompletas, delírios vívidos e perguntas que recusam resposta. O que o filme constrói, então, não é uma simples investigação sobre o passado — mas a reconstrução dolorosa da própria subjetividade despedaçada.

“O Paciente Perdido” evita a tentação de organizar o caos. Em vez de oferecer respostas simplistas ou linhas narrativas bem traçadas, o roteiro opta por um percurso errático e visceral, onde o avanço da história acompanha o ritmo errático do trauma não processado. A lógica aqui é psíquica, não linear. As cenas não se sucedem como peças de uma narrativa tradicional, mas como lampejos de lucidez em meio a uma neblina espessa. Cada memória recuperada é uma armadilha em potencial: aquilo que Thomas reconstrói pode não ser o que de fato ocorreu, mas o que sua dor é capaz de suportar. Essa incerteza, longe de ser um artifício estético, é a essência da experiência traumática — e o filme a representa com uma precisão rarefeita e perturbadora.

A psiquiatra que acompanha Thomas não é apenas uma figura clínica, mas um espelho imperfeito: ela também carrega seus próprios destroços emocionais. Suas cicatrizes, mais do que informações biográficas, funcionam como frestas por onde o espectador pode vislumbrar a complexidade dos afetos em jogo. Nada é unívoco, nada é estável. A relação entre os dois evolui entre gestos truncados, silêncios eloqüentes e uma tensão subjacente que jamais se dissipa. O roteiro, com admirável contenção, recusa o conforto da verbalização excessiva — e é justamente no não dito que reside parte de sua força. Cada hesitação e cada desvio contribuem para a construção de uma tensão que não é apenas narrativa, mas existencial: se trata de aprender a conviver com o irrecuperável.

Se a estrutura espiralada desafia as expectativas de quem busca explicações, ela é plenamente coerente com o tema que a sustenta. O trauma profundo não é um evento que se supera — é um território que se habita. Thomas não está tentando apenas lembrar o que aconteceu; está tentando suportar a lembrança, sem se despedaçar no processo. O filme retrata com crueza o que significa viver nesse estado de suspensão emocional, em que cada passo em direção à verdade também é um mergulho em regiões da mente onde dor e culpa se entrelaçam de modo indistinto. Não se trata de montar um quebra-cabeça, mas de aceitar que algumas peças talvez nunca existam.

A estética do filme é rigorosa. A direção opta por uma mise-en-scène austera, em que os ambientes quase estéreis e os enquadramentos claustrofóbicos ampliam a sensação de aprisionamento mental. As cores frias que dominam a paleta visual não apenas evocam a melancolia, mas também sugerem a anestesia emocional de um homem que deixou de sentir porque lembrar se tornou insuportável. A trilha sonora, discreta e pontual, atua como um sussurro que paira sobre as cenas, quase como se viesse de dentro da mente do protagonista. Não há explosões dramáticas: o horror aqui é interno, latente, quase clínico. E é justamente nessa contenção que reside a potência do filme.

Txomin Vergez entrega uma atuação que recusa o espetáculo e aposta na intensidade contida. Seu Thomas não grita, não colapsa em cena — ele desmorona em silêncio. É uma performance marcada por pequenos gestos, olhares evasivos, uma respiração irregular, que tornam o sofrimento algo físico, quase tangível. Vergez encarna um homem fragmentado, cuja vulnerabilidade se manifesta não em lágrimas, mas na rigidez de quem tenta se manter inteiro à força. Sua presença em cena é magnética, não por excesso, mas por sua entrega à incerteza — à angústia de não saber o que o fez sobreviver.

O filme deixa lacunas que muitos considerariam falhas: o papel ambíguo de Bastien, outro paciente psiquiátrico, permanece indecifrável; a bengala da psiquiatra, marcada com símbolos que nunca se explicam, persiste como um signo opaco. Mas essas ausências são deliberadas. Elas não apontam para negligência narrativa, e sim para a recusa em oferecer coerência onde há apenas destroços. “O Paciente Perdido” compreende que certos traumas não têm tradução, e que a busca por sentido pode ser, ela mesma, mais destrutiva que libertadora. Algumas perguntas, por mais que nos assombrem, precisam continuar sem resposta.

Mais do que um suspense psicológico, o longa é um estudo profundo sobre o que significa existir após o inominável. Ele não estetiza a dor, nem a transforma em motor narrativo. Em vez disso, encena o impasse: como continuar quando a memória se torna um campo minado? Como reconstruir uma identidade quando tudo o que se sabe é que algo irrecuperável foi perdido? Em tempos em que o cinema frequentemente recorre ao trauma como recurso fácil de dramaticidade, “O Paciente Perdido” propõe o contrário: um mergulho honesto, sem garantias de redenção. Ao fim da projeção, não restam respostas, mas algo mais inquietante — a consciência de que sobreviver pode ser menos um ato de resistência e mais um processo interminável de confronto com o vazio.

Filme: O Paciente Perdido
Diretor: Christophe Charrier
Ano: 2022
Gênero: Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★