Com apenas cinco minutos de tela, atuação de Benicio del Toro, digna de Oscar, no filme de Sean Penn, está disponível na Netflix Divulgação / Warner Bros.

Com apenas cinco minutos de tela, atuação de Benicio del Toro, digna de Oscar, no filme de Sean Penn, está disponível na Netflix

Há filmes que entretêm, outros que confortam. “A Promessa” — dirigido com rigor existencial por Sean Penn e inspirado no romance perturbador de Friedrich Dürrenmatt — escolhe um caminho mais tortuoso: ele confronta. Ao invés de seguir o fluxo reconfortante dos thrillers tradicionais, o filme cava fundo na fissura entre a lógica e o caos, revelando não uma história de justiça, mas uma dolorosa elegia à ilusão do controle. Ele não se propõe a elucidar um mistério; prefere escancarar o abismo que se abre quando todas as certezas se desfazem.

No centro desse mergulho está Jerry Black, vivido com crueza devastadora por Jack Nicholson. Sua figura inicial — a de um policial que decide prolongar sua vida ativa apenas mais um dia, movido por uma promessa feita a uma mãe enlutada — poderia sugerir um enredo de redenção. Mas essa é a armadilha mais perversa do filme: simular o reconhecimento de padrões para então negá-los. O juramento de Jerry não é um gesto nobre; é o gatilho de uma espiral onde a fé na razão se torna seu próprio cárcere. A promessa, aparentemente simples, se transmuta em uma obsessão que corrói qualquer noção de limite ético, emocional ou lógico.

O filme não oferece uma antítese da figura do detetive clássico — ele a implode por dentro. A busca por sentido conduz Jerry a ultrapassar uma linha invisível, tornando-se parte do próprio labirinto que tenta decifrar. Ao recusar a versão “resolvida” dos fatos apresentada pela polícia — baseada em uma confissão extraída sob coação de um homem com deficiência cognitiva —, ele se entrega à ideia de que a verdade ainda está lá fora, esperando para ser descoberta. Mas essa crença não é um farol: é um fogo-fátuo que o arrasta para o pântano da paranoia.

O ponto de ruptura não é o fracasso da armadilha que ele engenha; é o sucesso ilusório dessa armadilha. Jerry, convencido de que conseguirá capturar o assassino, utiliza uma criança — filha da mulher com quem tenta formar um vínculo — como isca. A decisão não é apenas moralmente condenável: ela expõe a falência da razão instrumental que, em nome de um bem maior, legitima o inaceitável. É nesse momento que a figura do herói se dissolve, e o que resta é um homem nu diante da própria desfiguração ética.

A grande ironia — que se revela apenas ao espectador, jamais ao protagonista — é a morte acidental do verdadeiro criminoso. O confronto jamais acontecerá. A armadilha está montada, a espera é infinita, e Jerry nunca saberá que já perdeu. Sua derrota não se dá por incompetência, mas por insistência. Ele permanece fiel a uma promessa que o mundo já tornou irrelevante, como alguém que guarda uma chave para uma porta que não existe mais.

Essa fidelidade cega é, talvez, a metáfora mais inquietante do filme. Jerry não está apenas em busca de um criminoso; ele está tentando restaurar um sistema de significados em colapso. Em sua recusa em aceitar respostas fáceis, ele se aproxima dos grandes personagens da tragédia grega — não por nobreza, mas pela incapacidade de desistir. Seu destino é o da pedra de Sísifo, mas sem o consolo da consciência. Ele não empurra a pedra por saber que ela cairá. Ele a empurra acreditando que, desta vez, ela ficará.

É aqui que a crítica de Dürrenmatt à estrutura do romance policial se faz mais incisiva. Na literatura original, o autor antecipa ao leitor que os mecanismos tradicionais da ficção investigativa — com sua lógica dedutiva e soluções satisfatórias — são inadequados para refletir a complexidade do real. Sean Penn adapta essa premissa com coragem, removendo os sinais que alertariam o espectador. O resultado é desconcertante: ao final, não apenas o personagem foi enganado, mas também o público, forçado a lidar com a ausência de fechamento como se encarasse a vida fora das telas.

Essa recusa em entregar recompensas narrativas transforma o filme numa experiência rarefeita, onde a tensão não reside no mistério, mas na decomposição progressiva do protagonista. O ritmo por vezes errático da direção não é falha, mas um espelho da mente em colapso. A trilha sonora age como sussurro persistente, enquanto a fotografia granulada e desbotada retrata um mundo sem promessas cumpridas — apenas fantasmas de possibilidades.

Jack Nicholson, aqui, não atua: ele se entrega. A performance de seu personagem, deteriorando-se silenciosamente, jamais clama por compaixão. É um retrato nu de alguém que se agarra a uma crença quando tudo ao redor já desmoronou. Ele não encontra o assassino. Não encontra consolo. Nem mesmo encontra sentido. Mas tampouco renuncia. E é nesse paradoxo — a persistência que não leva a nada — que o filme encontra sua força brutal. Jerry encarna o homem moderno diante do silêncio do universo.

A força de “A Promessa” está justamente nessa escolha radical: em vez de responder, ela escancara perguntas que desestabilizam. Vale a pena confiar em princípios quando a realidade os desautoriza? Até que ponto a busca pela verdade é virtuosa antes de se tornar destrutiva? Quando a obsessão é travestida de ética, o que resta da moralidade?

Diante dessas indagações, o filme não oferece consolo. Ele obriga o espectador a encarar a possibilidade de que nem toda busca leva à revelação, nem toda promessa pode — ou deve — ser cumprida. E talvez esse seja o gesto mais ousado do cinema contemporâneo: recusar-se a proteger o espectador da dor de uma verdade que nunca chega. Afinal, há feridas que não se curam com a resolução de um caso — apenas com o silêncio que resta quando tudo já foi tentado e ainda assim nada se alcançou.

Filme: A Promessa
Diretor: Sean Penn
Ano: 2001
Gênero: Crime/Drama/Mistério
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★