Há filmes que entretêm, outros que confortam. “A Promessa” — dirigido com rigor existencial por Sean Penn e inspirado no romance perturbador de Friedrich Dürrenmatt — escolhe um caminho mais tortuoso: ele confronta. Ao invés de seguir o fluxo reconfortante dos thrillers tradicionais, o filme cava fundo na fissura entre a lógica e o caos, revelando não uma história de justiça, mas uma dolorosa elegia à ilusão do controle. Ele não se propõe a elucidar um mistério; prefere escancarar o abismo que se abre quando todas as certezas se desfazem.
No centro desse mergulho está Jerry Black, vivido com crueza devastadora por Jack Nicholson. Sua figura inicial — a de um policial que decide prolongar sua vida ativa apenas mais um dia, movido por uma promessa feita a uma mãe enlutada — poderia sugerir um enredo de redenção. Mas essa é a armadilha mais perversa do filme: simular o reconhecimento de padrões para então negá-los. O juramento de Jerry não é um gesto nobre; é o gatilho de uma espiral onde a fé na razão se torna seu próprio cárcere. A promessa, aparentemente simples, se transmuta em uma obsessão que corrói qualquer noção de limite ético, emocional ou lógico.
O filme não oferece uma antítese da figura do detetive clássico — ele a implode por dentro. A busca por sentido conduz Jerry a ultrapassar uma linha invisível, tornando-se parte do próprio labirinto que tenta decifrar. Ao recusar a versão “resolvida” dos fatos apresentada pela polícia — baseada em uma confissão extraída sob coação de um homem com deficiência cognitiva —, ele se entrega à ideia de que a verdade ainda está lá fora, esperando para ser descoberta. Mas essa crença não é um farol: é um fogo-fátuo que o arrasta para o pântano da paranoia.
O ponto de ruptura não é o fracasso da armadilha que ele engenha; é o sucesso ilusório dessa armadilha. Jerry, convencido de que conseguirá capturar o assassino, utiliza uma criança — filha da mulher com quem tenta formar um vínculo — como isca. A decisão não é apenas moralmente condenável: ela expõe a falência da razão instrumental que, em nome de um bem maior, legitima o inaceitável. É nesse momento que a figura do herói se dissolve, e o que resta é um homem nu diante da própria desfiguração ética.
A grande ironia — que se revela apenas ao espectador, jamais ao protagonista — é a morte acidental do verdadeiro criminoso. O confronto jamais acontecerá. A armadilha está montada, a espera é infinita, e Jerry nunca saberá que já perdeu. Sua derrota não se dá por incompetência, mas por insistência. Ele permanece fiel a uma promessa que o mundo já tornou irrelevante, como alguém que guarda uma chave para uma porta que não existe mais.
Essa fidelidade cega é, talvez, a metáfora mais inquietante do filme. Jerry não está apenas em busca de um criminoso; ele está tentando restaurar um sistema de significados em colapso. Em sua recusa em aceitar respostas fáceis, ele se aproxima dos grandes personagens da tragédia grega — não por nobreza, mas pela incapacidade de desistir. Seu destino é o da pedra de Sísifo, mas sem o consolo da consciência. Ele não empurra a pedra por saber que ela cairá. Ele a empurra acreditando que, desta vez, ela ficará.
É aqui que a crítica de Dürrenmatt à estrutura do romance policial se faz mais incisiva. Na literatura original, o autor antecipa ao leitor que os mecanismos tradicionais da ficção investigativa — com sua lógica dedutiva e soluções satisfatórias — são inadequados para refletir a complexidade do real. Sean Penn adapta essa premissa com coragem, removendo os sinais que alertariam o espectador. O resultado é desconcertante: ao final, não apenas o personagem foi enganado, mas também o público, forçado a lidar com a ausência de fechamento como se encarasse a vida fora das telas.
Essa recusa em entregar recompensas narrativas transforma o filme numa experiência rarefeita, onde a tensão não reside no mistério, mas na decomposição progressiva do protagonista. O ritmo por vezes errático da direção não é falha, mas um espelho da mente em colapso. A trilha sonora age como sussurro persistente, enquanto a fotografia granulada e desbotada retrata um mundo sem promessas cumpridas — apenas fantasmas de possibilidades.
Jack Nicholson, aqui, não atua: ele se entrega. A performance de seu personagem, deteriorando-se silenciosamente, jamais clama por compaixão. É um retrato nu de alguém que se agarra a uma crença quando tudo ao redor já desmoronou. Ele não encontra o assassino. Não encontra consolo. Nem mesmo encontra sentido. Mas tampouco renuncia. E é nesse paradoxo — a persistência que não leva a nada — que o filme encontra sua força brutal. Jerry encarna o homem moderno diante do silêncio do universo.
A força de “A Promessa” está justamente nessa escolha radical: em vez de responder, ela escancara perguntas que desestabilizam. Vale a pena confiar em princípios quando a realidade os desautoriza? Até que ponto a busca pela verdade é virtuosa antes de se tornar destrutiva? Quando a obsessão é travestida de ética, o que resta da moralidade?
Diante dessas indagações, o filme não oferece consolo. Ele obriga o espectador a encarar a possibilidade de que nem toda busca leva à revelação, nem toda promessa pode — ou deve — ser cumprida. E talvez esse seja o gesto mais ousado do cinema contemporâneo: recusar-se a proteger o espectador da dor de uma verdade que nunca chega. Afinal, há feridas que não se curam com a resolução de um caso — apenas com o silêncio que resta quando tudo já foi tentado e ainda assim nada se alcançou.
★★★★★★★★★★