Se há um filme na Netflix que todos deveriam assistir, é a joia silenciosa de Charlotte Wells — delicada, profunda e impossível de esquecer Divulgação / Charades

Se há um filme na Netflix que todos deveriam assistir, é a joia silenciosa de Charlotte Wells — delicada, profunda e impossível de esquecer

Há filmes que não se anunciam com estardalhaço, mas operam como assombros silenciosos: “Aftersun” caminha por essa linha tênue entre a leveza enganosa e o abismo afetivo. O que começa com a aparência banal de uma viagem de férias entre pai e filha se converte em um estudo devastador sobre o que resta quando o tempo apaga os contornos e só a memória resiste. A diretora Charlotte Wells abre a narrativa com gestos suaves, evitando sobrecarregar os sentidos, como se nos colocasse na posição de observadores que tropeçam por acidente num relicário emocional. Nada ali pede por nossa emoção — e é exatamente por isso que ela se impõe.

A figura paterna, aos trinta e poucos anos, carrega um tipo de exaustão que ultrapassa a fadiga física. Há nele um cansaço silencioso, visível apenas àqueles que, como a pequena Sophie, estão próximos o suficiente para notar a sombra persistente por trás dos sorrisos amenos. Ela o observa com a urgência de quem sabe, mesmo sem entender, que há algo ali prestes a se dissipar. Esse olhar infantil — ora inquisitivo, ora complacente — sustenta o filme como vértebra invisível. Ele nos obriga a olhar também, não apenas para a tela, mas para dentro do que esquecemos de lembrar.

Charlotte Wells não filma para explicar, mas para rememorar. É nesse ato de rememoração que reside sua força destrutiva e redentora. A morte de seu próprio pai, quando ela tinha dezesseis anos, transborda em cada enquadramento, não como homenagem, tampouco como expiação, mas como tentativa de recompor o inominável. A distância geográfica entre os dois — ela em Nova York, ele em Londres — já anunciava a ausência. Mas a morte sela o que a vida apenas esboçava: a certeza de que certos laços resistem apenas como ruínas.

As imagens capturam os fragmentos que escapam à lógica do tempo cronológico. No resort turco onde se desenrola a ação, cada gesto — do cigarro que ele hesita em acender, ao desconforto com a cama única — torna-se indicativo de algo mais profundo: a tentativa falha de manter as aparências quando a estrutura interna já colapsou. Nada ali é acidental, ainda que o pareça. Cada detalhe carrega a insígnia daquilo que foi sentido antes de ser compreendido. O não-dito pulsa mais alto que os diálogos, e é justamente na omissão que se revela a dimensão trágica da experiência.

Wells escapa de qualquer armadilha panfletária ou sentimental. Ela não romantiza a dor, tampouco a estetiza. Em vez disso, impõe um ritmo que flerta com o cotidiano, permitindo que o espectador seja absorvido pela normalidade daquelas férias para, em seguida, ser atingido por uma tristeza que não se nomeia, apenas se reconhece. Frankie Corio e Paul Mescal sustentam essa dinâmica com rara delicadeza. Eles não disputam a atenção, mas alternam a centralidade emocional com uma naturalidade que intensifica a sensação de intimidade compartilhada.

É notável como o filme se recusa a enquadrar seus personagens em papéis rígidos. Calum não é o pai heróico nem o fracassado absoluto. Ele é um homem desorientado, cujas dores não encontram linguagem. Sophie, por sua vez, é mais do que a criança sensível: ela é a testemunha silenciosa de uma falência que não entende, mas sente. Quando tenta se aproximar de um garoto no fliperama, sua hesitação não vem da inocência, mas de uma intuição precoce sobre a instabilidade dos vínculos.

Ao transformar a perspectiva da filha na espinha dorsal da narrativa, o filme conduz o espectador a um tipo de verdade que escapa ao factual. Quando Sophie adulta (interpretada por Celia Rowlson-Hall) revisita suas lembranças, o tempo se dobra, e o que vemos não é reconstrução, mas reencontro. Na cena da boate, Calum dança como se lutasse contra um exorcismo interno. A câmera flutua em meio às luzes estroboscópicas, e o efeito é o de uma lembrança prestes a se desfazer. Mas algo daquela noite resiste, como uma nota sustentada que insiste em vibrar mesmo após o fim da melodia.

Wells insinua que crescer é aprender a decifrar o passado com o léxico adquirido na dor. E que, às vezes, perdoar os nossos pais por suas ausências é também reconhecer que talvez eles jamais tenham sido suficientemente amparados para permanecer. Naquele quarto de hotel, naquela cama indecisa, naquele cigarro aceso com esforço, está contida a tragédia de quem tenta — até o último instante — ser presença, mesmo fadado a desaparecer.

Depois do sol, talvez não venha a noite, mas algo mais brando e também mais cruel: a memória. E nela, dançamos juntos, sempre um passo atrás do que poderíamos ter sido.

Filme: Aftersun
Diretor: Charlotte Wells
Ano: 2022
Gênero: Coming-of-age/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★