O filme premiado que rendeu um processo de 100 milhões de dólares — e está entre os melhores da Netflix Divulgação / Netflix

O filme premiado que rendeu um processo de 100 milhões de dólares — e está entre os melhores da Netflix

Não há alegoria, metáfora ou denúncia que dê conta da brutalidade sistemática que pesa sobre os ombros das mulheres no Irã — um território onde a moral não é um princípio, mas um instrumento de coerção. Desde que o regime teocrático derrubou Reza Pahlavi em 1979, a ortodoxia religiosa assumiu o controle do corpo feminino como um campo de batalha, transformando o hijab em símbolo e ferramenta de punição. Mahsa Amini, jovem curda de 22 anos, pagou com a vida por desafiar milimetricamente essa ordem: seu cabelo, excessivamente visível aos olhos da polícia dos costumes, selou sua sentença. O aparato estatal agiu como sempre — rápido, cruel, impune.

A morte de Amini produziu rachaduras até mesmo no muro de silêncio erguido pelo regime. Ainda assim, o panorama permanece distorcido e sinistro, administrado por Ali Khamenei e por Ebrahim Raisi, figuras que mantêm intacta a arquitetura de repressão iniciada por Khomeini. O que o cineasta Ali Abbasi faz em “Holy Spider” não é propriamente denunciar esse sistema — é expô-lo em sua ossatura moral apodrecida. A história que narra baseia-se em eventos reais: a caçada de um assassino de prostitutas que aterrorizou Mashhad no início dos anos 2000. Mas a ênfase está menos no rastro de corpos e mais na cultura que legitima esse rastro, na conivência subterrânea entre dogma e violência.

O roteiro, escrito por Abbasi, Afshin Kamran Bahrami e Jonas Wagner, escava o território movediço das ambiguidades morais. Ao contrário de investigações convencionais, nas quais o mal se oculta, aqui ele desfila de peito aberto — é o próprio tecido social que o encoraja. A protagonista, Arezoo Rahimi, jornalista freelance, tenta romper essa cortina opaca. Sua chegada a Mashhad já dá o tom da resistência que enfrentará: não é bem-vinda nem no quarto de hotel que ela mesma reservou. Seu corpo feminino, desacompanhado, é um escândalo em si. O recepcionista hesita, examina, julga. E então permite — mais por desconcerto do que por gentileza — que ela suba.

O que se segue é um périplo de humilhações institucionais. Rahimi esbarra em uma burocracia masculinista e contaminada por uma lógica de suspeição constante: para cada pergunta que faz, precisa provar que é digna de ser ouvida. A performance de Zar Amir Ebrahimi captura cada nuance da exaustão de quem precisa negociar sua integridade em cada porta que atravessa. A câmera de Abbasi não oferece alívio: fixa-se nas expressões, no suor, nos silêncios. Os corredores da administração pública iraniana tornam-se labirintos onde a protagonista quase sempre entra pela porta errada — não por distração, mas por arquitetura perversa.

Enquanto isso, o assassino, Saeed, encarna uma duplicidade perturbadora. Ele não é um lunático à margem do sistema, mas seu filho legítimo. Homem piedoso, pai de família exemplar, Saeed considera sua missão “purificar” as ruas. É um moralista armado pelo próprio discurso oficial, e suas vítimas são escolhidas com precisão simbólica: mulheres que transgridem o papel que lhes foi socialmente imposto. A forma como as mata — com o próprio hijab — não é um detalhe macabro, mas um comentário ácido de Abbasi sobre a instrumentalização do véu: aquilo que deveria proteger torna-se o instrumento do extermínio.

O desfecho do filme não oferece catarse. Pelo contrário: sugere que o ciclo de violência está longe de se encerrar. O horror não é individual, mas hereditário. A última cena, perturbadora em sua frieza, faz com que o espectador se pergunte não apenas sobre o destino das mulheres no Irã, mas sobre o tipo de mundo que se constrói quando o fanatismo moral toma o lugar da justiça. Não é o crime em si que mais choca — é a lógica de veneração que ele desperta. O que “Holy Spider” entrega é um retrato desconfortante de um país onde o assassino é, muitas vezes, só mais um fiel entre tantos.

Filme: Holy Spider
Diretor: Ali Abbasi
Ano: 2022
Gênero: Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★