Há exatamente quatro décadas, o Brasil se despedia de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas — Cora Coralina —, autora cuja figura se cristalizou como símbolo quase indiscutível de uma certa brasilidade poética. Desde sua morte, em 10 de abril de 1985, sua presença não apenas permaneceu: foi transfigurada em mito. Um mito confortável, que oferece ao país a imagem de si mesmo que deseja preservar — simples, resiliente, doce apesar das dores.
A canonização de Cora seguiu um caminho singular, fora dos salões institucionais: não ingressou na Academia Brasileira de Letras, mas chegou às escolas, aos discursos públicos, às redes sociais, às cozinhas populares. Tornou-se a poeta dos azulejos, das casas coloniais, dos calendários de parede — lida muitas vezes mais por hábito do que por escolha, mais citada do que interrogada.
Sua obra, centrada no cotidiano e nos gestos mínimos da vida interiorana, alcançou status de monumento afetivo. Em parte, porque oferece ao leitor uma linguagem desprovida de ornamentos, direta, reconhecível. Em parte, porque reencena, em verso, um Brasil que parece sobreviver à margem das ruínas: mulheres de lenço na cabeça, quintais com cheiro de goiaba, o tempo escoando devagar. Mas é precisamente aí que mora a ambiguidade. O conforto dessa estética da simplicidade pode empobrecer o olhar. A celebração da experiência pessoal e doméstica — legítima, potente — não deve nos isentar de perguntar o que ficou de fora: quais outras vozes femininas, à mesma época, recusaram a delicadeza e foram silenciadas?
Ao transformar-se em ícone da oralidade e da resistência popular, Cora também foi assimilada por um discurso que prefere a permanência à ruptura, a ternura à contradição. Sua poesia sobrevive, sim, mas nem sempre como leitura viva — às vezes, apenas como relíquia.
Para marcar os 40 anos de sua morte, a Revista Bula selecionou cinco poemas que ilustram esse lugar ambíguo: entre o vigor e a acomodação, entre a força da memória e o risco da repetição. São textos que espelham o Brasil cotidiano — aquele que raramente ocupa as vitrines da alta cultura —, mas também nos desafiam a reler Cora fora do enquadramento.
Porque a permanência de uma autora não se mede apenas pela presença nas paredes ou nas postagens — mas pela capacidade de sua obra provocar. Desinstalar. Remexer no que parecia assentado. Talvez esse seja o gesto mais necessário neste aniversário: retirar Cora do altar e devolvê-la à terra — onde suas palavras nasceram, sim, mas também onde seus silêncios ainda pedem escuta.
POEMA DO MILHO
Milho . . .
Punhado plantado
nos quintais.
Talhões fechados
pelas roças.
Entremeado nas lavouras,
baliza marcante
nas divisas.
Milho verde.
Milho seco.
Bem granado,
cor de ouro.
Alvo.
Às vezes vareia —
espiga roxa,
vermelha,
salpintada.
Milho virado,
maduro,
onde o feijão enrama.
Milho quebrado,
debulhado
na festa das colheitas anuais.
Bandeira de milho
levada para os montes,
largada pelas roças.
Bandeiras esquecidas
na fartura.
Respiga descuidada
dos pássaros
e dos bichos.
Milho empaiolado.
Abastança tranquila
do rato,
do caruncho,
do cupim.
Palha de milho
para o colchão.
Jogada pelos pastos.
Mascada pelo gado.
Trançada
em fundos de cadeiras.
Queimada
nas coivaras.
Leve mortalha
de cigarros.
Balaio de milho
trocado com o vizinho
no tempo da planta.
Não se planta,
nos sítios,
semente da mesma terra.
Ventos rondando,
redemoinhando.
Ventos de outubro.
Tempo mudado.
Revôo de saúva.
Trovão surdo,
tropeiro.
Na vazante do brejo,
no lameiro,
o sapo-fole,
o sapo-ferreiro,
o sapo-cachorro.
Acauã de madrugada
marcando o tempo,
chamando chuva.
Roça nova encoivarada,
começo de brotação.
Roça velha destocada.
Palhada batida,
riscada de arado.
Barrufo de chuva.
Cheiro de terra,
cheiro de mato.
Terra molhada.
Terra saroia.
Noite chuvada,
relampeada.
Dia sombrio.
Tempo mudado,
dando sinais.
Observatório.
Lua virada.
Lua pendida . . .
Circo amarelo,
distanciado,
marcando chuva.
Calendário.
Astronomia
do lavrador.
Planta de milho
na lua-nova.
Sistema velho,
colonial.
Planta de enxada.
Seis grãos na cova,
quatro na regra,
dois de quebra.
Terra arrastada
com o pé,
pisada,
incalcada,
mode os bichos.
Lanceado certo-cabo-da-enxada.
Vai, vem . . .
Sobe, desce . . .
Terra molhada.
Terra saroia.
Seis grãos na cova.
Quatro na regra.
Dois de quebra.
Sobe.
Desce . . .
Camisa de riscado.
Calça de mescla.
Vai, vem . . .
Golpeando a terra,
o plantador.
Na sombra da moita,
na volta do toco —
o ancorote d’água.
Cavador de milho,
que está fazendo?
A que milênios
vem você plantando?
Capanga de grãos dourados
a tiracolo.
Crente da Terra.
Sacerdote da Terra.
Pai da Terra.
Filho da Terra.
Ascendente da Terra.
Descendente da Terra.
Ele mesmo — Terra.
Planta com fé religiosa.
Planta sozinho,
silencioso.
Cava e planta.
Gestos pretéritos,
imemoriais.
Oferta remota,
patriarcal.
Liturgia milenar.
Ritual de paz.
Em qualquer parte da Terra
um homem estará sempre plantando,
recriando a vida,
recomeçando o mundo.
Milho plantado,
dormindo no chão,
aconchegados
seis grãos na cova.
Quatro na regra.
Dois de quebra.
Vida inerte
que a terra vai multiplicar.
E vem a perseguição.
O bichinho anônimo
que espia,
pressente.
A formiga-cortadeira —
quenquém.
A ratinha do chão,
exploradeira.
A rosca vigilante
na rodilha.
O passo-preto vagabundo,
galhofeiro,
vaiando,
sorrindo . . .
Aos gritos,
arrancando,
mal aponta.
O cupim clandestino,
roendo,
minando,
só de ruindade.
E o milho realiza
o milagre genético
de nascer.
Germina.
Vence os inimigos.
Aponta aos milhares.
Seis grãos na cova.
Quatro na regra.
Dois de quebra.
Um canudinho enrolado,
amarelo-pálido,
frágil,
dourado,
se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se.
Enraíza.
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa.
Encana.
Disciplina
com os poderes de Deus.
Jesus e São João
desceram de noite na roça.
Botaram a bênção no milho.
E veio com eles
uma chuva maneira,
criadeira,
fininha.
Uma chuva velhinha,
de cabelos brancos,
abençoando
a infância do milho.
O mato vem vindo junto,
sementeira.
As pragas todas,
conluiadas.
Carrapicho.
Amargoso.
Picão.
Marianinha.
Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha.
Colchão.
Alcança,
não alcança.
Competição.
Pac… pac… pac…
A enxada canta.
Bota o mato abaixo.
Arrasta uma terrinha
para o pé da planta.
Carpa bem feita
vale por duas…
Quando pode.
Quando não…
Sarobeia.
Chega terra.
O milho avoa.
Cresce na vista dos olhos.
Aumenta de dia.
Pula de noite.
Verde entonado.
Disciplinado.
Sadio.
Agora…
a lagarta da folha,
lagarta rendeira…
Quem é que vê?
Faz a renda da folha
no quieto da noite.
Dorme de dia
no olho da planta.
Gorda.
Barriguda.
Cheia.
Expurgo?
Nada.
Força da lua…
Chovendo acaba —
a Deus querê.
O mio tá bonito…
Vai sê bão o tempo
pras lavoras todas…
O mio tá marcando…
Condiéionando o futuro:
O roçado de seu Féli
tá qui fais gosto…
Um refrigério.
O mio lá tá verde
qui chega a s’tar azur…
— Conversam vizinhos
e compadres.
Milho crescendo,
garfando,
esporando nas defesas.
Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.
Do chão ao pendão,
60 dias vão.
Passou aguaceiro,
pé-de-vento.
O milho acamou…
Perdido?…
Nada…
Ele arriba
com os poderes de Deus.
E arribou mesmo.
Garboso.
Empertigado.
Vertical.
No cenário vegetal,
um engraçado boneco
de frangalhos
sobreleva,
vigilante.
Alegria verde
dos periquitos gritadores.
Bandos em sequência.
Evolução.
Pouso.
Retrocesso.
Manobras em conjunto.
Desfeita formação.
Roedores grazinando,
se fartando,
foliando,
vaiando
os ingênuos espantalhos.
Jesus e São João
andaram de noite
passeando na lavoura
e botaram a bênção no milho.
Fala assim gente de roça
e fala certo.
Pois não está lá
na taipa do rancho
o quadro deles,
passeando
dentro dos trigais?
Analogias.
Coerências.
Milho embandeirado.
Bonecando em gestação.
Senhor,
como a roça cheira bem!
Flor de milho.
Travessa e festiva.
Flor feminina.
Esvoaçante.
Faceira.
Flor masculina.
Lúbrica.
Desgraciosa.
Bonecas de milho,
túrgidas,
negaceando,
se mostrando
vaidosas.
Túnicas.
Sobretúnicas.
Saias.
Sobre-saias.
Anáguas.
Camisas verdes.
Cabelos verdes.
Cabeleiras soltas.
Lavadas.
Despenteadas.
O milharal
é desfile
de beleza vegetal.
Cabeleiras vermelhas.
Bastas.
Onduladas.
Cabelos prateados.
Verde-gaio.
Cabelos roxos.
Lisos.
Encrespados.
Destrançados.
Compridos.
Curtos.
Queimados.
Despenteados.
Xampu de chuvas.
Flagrâncias novas
no milharal.
Senhor,
como a roça
cheira bem!
As bandeiras altaneiras
vão se abrindo
em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão
da libido vegetal.
Procissão fálica,
pagã.
Um sentido genésico
domina o milharal.
Flor masculina
erótica,
libidinosa,
Polinizando,
fecundando
a florada adolescente
das bonecas.
Boneca de milho,
vestida de palha…
Sete cenários
defendem o grão.
Gordas.
Esguias.
Delgadas.
Alongadas.
Cheias.
Fecundadas.
Cabelos soltos,
excitantes.
Vestidas de palha.
Sete cenários
defendem o grão.
Bonecas verdes,
vestidas de noiva.
Afrodisíacas.
Nupciais…
De permeio,
algumas virgens loucas…
Descuidadas.
Desprovidas.
Espigas falhadas.
Fanadas.
Macheadas.
Cabelos verdes.
Cabelos brancos.
Vermelho-amarelo-roxo,
requeimado…
E o pólen dos pendões
fertilizando…
Uma fragrância quente,
sexual,
invade
num espasmo
o milharal.
A boneca fecundada
vira espiga.
Amortece
a grande exaltação.
Já não importam
as verdes cabeleiras
rebeladas.
A espiga cheia
salta da haste.
O pendão fálico
vira ressecado,
esmorecido,
No sagrado rito
da fecundação.
Tons maduros
de amarelo.
Tudo se volta
para a terra-mãe.
O tronco seco
é um suporte, agora,
onde o feijão verde
trança,
enrama,
enflora.
Montes de milho novo,
esquecidos,
marcando claros
no verde
que domina a roça.
Bandeiras perdidas
na fartura das colheitas.
Bandeiras largadas.
Restolhadas.
E os bandos
de passo-pretos galhofeiros
gritam e cantam
na respiga
das palhadas.
Não andeis a respigar —
diz o preceito bíblico.
O grão que cai
é o direito da terra.
A espiga perdida —
pertence às aves
que têm seus ninhos
e filhotes a cuidar.
Basta para ti, lavrador,
o monte alto
e a tulha cheia.
Deixa a respiga
para os que não plantam
nem colhem —
O pobrezinho que passa.
Os bichos da terra.
E os pássaros do céu.
VELHO SOBRADO
Um montão disforme.
Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.
Abandono.
Silêncio.
Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal
acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano
com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas
ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha
enfolhada,
berrante de flores amarelas,
cingindo tudo.
Dá guarda, perfilado,
um pé de mamão-macho.
No alto, instala-se,
dominadora,
uma jovem gameleira,
dona do futuro.
Cortina vulgar
de decência urbana
defende a nudez dolorosa
das ruínas do sobrado —
um muro.
Fechado.
Largado.
O velho sobrado colonial,
de cinco sacadas,
de ferro forjado,
cede.
Bem que podia ser conservado.
Bem que devia ser retocado.
Tão alto.
Tão nobre-senhorial.
O sobradão dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje.
Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados — passantes e vizinhos.
Aos poucos,
a fortaleza desabando.
Quem se lembra?
Quem se esquece?
Padre Vicente José Vieira.
D. Irena Manso Serradourada.
D. Virgínia Vieira —
grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamim Vieira.
Rodolfo Luz Vieira.
Ludugero.
Ângela.
Débora.
Maria…
Tão distante
a gente do sobrado…
Bailes e saraus antigos.
Cortesia.
Sociedade goiana.
Senhoras e cavalheiros…
tão desusados…
O Passado…
A escadaria de patamares
vai subindo…
subindo…
Portas no alto.
À direita.
À esquerda.
Se abrindo,
familiares.
Salas.
Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes
forradas de papel,
desenho de querubins,
segurando cornucópia
e laços.
Retratos de antepassados,
solenes,
empertigados.
Gente de dantes.
Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas,
sustentando jarrões pesados.
Antigas flores
de que ninguém mais fala.
Rosa cheirosa de Alexandria.
Sempre-viva.
Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim-do-cabo.
Resedá.
Um aroma esquecido —
manjerona.
ANTIGUIDADES
Quando eu era menina,
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela,
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado.
Grosso.
Pastoso.
Por sinal que muito ruim.
Eu era menina em crescimento.
Gulosa.
Abria os olhos
para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona
lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade
de comer o bolo todo.
Era só olhos
e boca
e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava.
Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina,
tão delgada…
E fatias iguais
às outras manas.
E que ninguém pedisse mais.
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário alto,
fechado,
impossível.
Era aquilo,
uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim,
sem mais nem menos.
Destinava-se
às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas
da meninada.
Criança,
no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande
da casa
usava
e abusava
de pretensos direitos
de educação.
Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos
e beliscão.
Palmatória
e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto
de castigo,
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
Tomando propósito.
Expressão muito corrente
e pedagógica.
Aquela gente antiga,
passadiça,
era assim:
severa.
Ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas…
Valha-me Deus!…
As visitas…
Como eram queridas,
recebidas,
estimadas,
conceituadas,
agradadas!
Era gente superenjoada.
Solene.
Empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades…
Até os nomes,
que não se percam:
D. Aninha
com Seu Quinquim.
D. Milécia,
sempre às voltas
com receitas de bolo,
assuntos de licores
e pudins.
D. Benedita
com sua filha Lili.
D. Benedita —
alta, magrinha.
Lili —
baixota, gordinha.
Puxava de uma perna
e fazia crochê.
E, diziam dela
línguas viperinas:
Lili é a bengala
de D. Benedita.
Mestre Quina.
D. Luisalves.
Saninha de Bili.
Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio…
Dessa então
me lembro bem.
Era amiga do peito
de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado
nove horas,
e a corneta do quartel
tocado silêncio.
E só se ia
quando o galo cantava.
O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava
fazendo sala.
Rendidos de sono,
davam o fora.
No fim,
só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.
D. Joaquina era
uma velha
grossa.
Rombuda.
Aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores
e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro
de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitada na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava,
contando causos infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força
de ficar acordada,
esperando
a descida certa
do bolo
encerrado
no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono,
já dormia.
E sonhava
com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo,
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
ai de mim —
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro,
o prato vazio
onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado
de rapé.
A GLEBA ME TRANSFIGURA
Sinto que sou abelha
no seu artesanato.
Meus versos
têm cheiro de mato,
dos bois
e dos currais.
Eu vivo
no terreiro dos sítios
e das fazendas primitivas.
(…)
Minha identificação
profunda e amorosa
com a terra
e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura.
Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada,
o mééé dos bezerros.
O roncar
e focinhar dos porcos,
o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras,
o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore.
Sou tronco.
Sou raiz.
Sou folha.
Sou graveto.
Sou mato.
Sou paiol
e sou a velha tulha de barro.
Pela minha voz
cantam todos os pássaros,
piam as cobras
e coaxam as rãs.
Mugem todas as boiadas
que vão pelas estradas.
Sou espiga
e o grão
que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica)
é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário
que sulca.
Meus versos
têm relances de enxada,
gume de foice
e o peso do machado.
Cheiro de currais
e gosto de terra.
(…)
Amo a terra
de um velho amor consagrado.
Através de gerações
de avós rústicos,
encartados nas minas
e na terra latifundiária,
sesmeiros.
A gleba está dentro de mim.
Eu sou a terra.
(…)
Em mim
a planta renasce
e floresce,
sementeia
e sobrevive.
Sou a espiga
e o grão fecundo
que retorna à terra.
Minha pena
é a enxada do plantador,
é o arado que vai sulcando,
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol
e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenar.
Eu venho de milênios.
Eu sou a mulher
mais antiga do mundo,
plantada
e fecundada
no ventre escuro
da terra.
A LAVADEIRA
Essa mulher…
Tosca.
Sentada.
Alheada…
Braços cansados
descansando nos joelhos…
Olhar parado,
vago,
perdida no seu mundo
de trouxas
e espuma de sabão —
é a lavadeira.
Mãos rudes,
deformadas.
Roupa molhada.
Dedos curtos.
Unhas enrugadas.
Córneas.
Unheiros doloridos
passaram,
marcaram.
No anular,
um círculo metálico,
barato,
memorial.
Seu olhar distante,
parado no tempo.
À sua volta —
uma espumarada
branca de sabão.
Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor.
O primeiro varal de roupa
festeja o sol
que vai subindo,
vestindo o quaradouro
de cores multicores.
Essa mulher
tem quarenta anos de lavadeira.
Doze filhos,
crescidos
e crescendo.
Viúva, naturalmente.
Tranquila.
Exata.
Corajosa.
Temente dos castigos do céu.
Enrodilhada
no seu mundo pobre.
Madrugadeira.
Salva a aurora.
Espera pelo sol.
Abre os portais do dia
entre trouxas
e barrelas.
Sonha calada.
Enquanto a filharada cresce,
trabalham suas mãos pesadas.
Seu mundo se resume
na vasca,
no gramado,
no arame
e prendedores,
na tina d’água.
De noite —
o ferro de engomar.
Vai lavando.
Vai levando.
Levantando doze filhos.
Crescendo devagar.
Enrodilhada
no seu mundo pobre,
dentro de uma espumarada
branca de sabão.
Às lavadeiras
do Rio Vermelho,
da minha terra,
faço deste pequeno poema
meu altar de ofertas.