A obra-prima de Krzysztof Kieślowski chegou ao Reserva Imovision — uma aula sobre amadurecimento e solidão Divulgação / Miramax

A obra-prima de Krzysztof Kieślowski chegou ao Reserva Imovision — uma aula sobre amadurecimento e solidão

“A Dupla Vida de Véronique” configura-se como uma espécie de preâmbulo ao que Krzysztof Kieślowski (1941-1996) pretenderia com os filmes que vieram a constar de seu currículo, como se comprova na poética e surpreendente trilogia das três cores, “Azul” (1993), “Branco” (1994) e “Vermelho” (1994). Aqui, Kieślowski assume uma postura muito distinta da aura sagrada daquele conjunto, mas preserva o expediente de lançar mão de metáforas e símbolos, o que realça o aspecto passional de sua produção. Logo no começo da trama, se veem as luzes da cidade substituindo as estrelas num plano invertido, como se o diretor sugerisse a ideia de dois universos em confronto. E é o que se vai ver: duas personagens, a francesa Véronique e Wéronika, polonesa, são vividas pela mesma Irène Jacob.

Kieślowski estabelece uma intersecção entre as vidas dessas mulheres, tomando a cautela de pontuar as diferenças entre uma e outra, a pouco e pouco mais evidente conforme segue a narrativa. Seu roteiro, coassinado por Krzysztof Piesiewicz, concentra-se no início na polaca Wéronika, ingênua e mais suscetível a emoções e a agir sob o signo de seus impulsos, sem receio algum de entregar-se a toda sorte de estímulo, encarnação de uma entidade báquica qualquer. Já a francesa, que surge no segundo ato, dá preferência à razão, tem uma personalidade de contemplação frente à vida e controla seus desejos, deixando à mostra um pendor apolínico. Não se depreende do enredo se trata-se de fato de duas mulheres ou das duas faces de uma mulher só, uma dúvida que Kieślowski parece gostar de incutir no espectador, capaz de perceber que uma responde aos ímpetos da outra e que a atmosfera enigmática da história reside justamente aí.

O diretor brinca com as coincidências entre Wéronika e Véronique, a exemplo de terem ambas nascido no mesmo dia, sofrerem do mesmo mal cardíaco e cantarem divinamente. Como se vai assistir, apenas uma delas morre, porém a confusão não arrefece, pelo contrário. Kieślowski estica a corda narrativa do filme ao incluir, com absoluto domínio técnico, a fita que Véronique recebe pelo correio. Ela coloca-a para rodar e escuta o ruído branco feito o de uma estação de trem, indicação de que aquele que a mandou, um possível admirador secreto, quer vê-la nesse ambiente.

O encontro acontece pela metade, ela frustra-se e nós também, porque fica cada vez mais difícil vislumbrar o que o diretor pretende, malgrado Jacob ofereça um desempenho triunfal ao capturar o espírito dialético da personagem, num paralelo excitante com “Viridiana” (1961), de Luis Buñuel (1900-1983) e mais vigoroso ainda ao aludir a outro grande mestre do cinema do século 20. Uma das mulheres leva-nos a pensar que anseia por roubar a identidade da outra, numa referência quase explícita a Liv Ullmann e Bibi Andersson (1935-2019) em “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966), de Ingmar Bergman (1918-2007). A ideia de metamorfose é decerto inescapável, do mesmo modo que o argumento da autoafirmação, forte nas passagens em que Wéronika evoca a transcendência pelo prazer, fiel a sua natureza libertária, até autodestrutiva.

“A Dupla Vida de Véronique” encanta por não nutrir a pretensão de fornecer respostas, demandando do público que esteja sempre desperto e sensível às constantes mudanças de postura desses dois entes, de Véronique para Wéronika e vice-versa. O filme estuda a fundo essa alma cindida até que, finalmente, elas viram uma só. Verdadeiro poema sobre a dubiedade das criaturas humanas, “A Dupla Vida de Véronique” é um tratado sobre o engano, a verossimilhança e o real, condições em eterno choque na vida do homem.

Filme: A Dupla Vida de Véronique 
Diretor: Krzysztof Kieślowski
Ano: 1991
Gênero: Drama/Fantasia/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.