Durante anos, “A Escola do Bem e do Mal” esteve envolta em rumores, mudanças de direção e promessas não cumpridas. Quando finalmente ganhou forma pelas mãos da Netflix, a expectativa não era apenas pela adaptação de um best-seller — mas por um posicionamento claro diante da saturação de sagas juvenis que paira sobre o mercado. Em vez de negar a herança de franquias como “Harry Potter”, “Jogos Vorazes” ou “Maze Runner”, o longa dirigido por Paul Feig opta por absorvê-las com ironia e autoconsciência. Essa apropriação de referências, longe de ser um gesto preguiçoso, funciona como ponto de partida para um jogo de subversões que ora homenageia, ora desmonta os próprios alicerces da fantasia juvenil.
A narrativa acompanha Agatha e Sophie, duas garotas de origens humildes que vivem em Gavaldon, um vilarejo sombrio onde contos de fadas parecem ganhar vida pelas frestas da realidade. Quando são transportadas à lendária Escola do Bem e do Mal, esperam encontrar seus destinos alinhados aos estereótipos que cada uma encarna. Mas o roteiro impõe um gesto de ruptura: Agatha, a introspectiva, vai parar no lado do “Bem”; Sophie, sonhadora e narcisista, é enviada ao “Mal”. Essa inversão, longe de ser apenas um artifício dramático, lança o espectador em um território onde identidades são forjadas por julgamentos alheios — e onde a aparência, mais do que os atos, determina o valor de um indivíduo.
Essa dissonância entre essência e forma guia toda a construção simbólica do filme. Em meio a torres góticas, feitiços e rivalidades escolares, o que se revela é uma crítica aguda à lógica binária que sustenta tantos discursos contemporâneos: o Bem contra o Mal, o certo contra o errado, o belo contra o grotesco. O longa se pergunta, com certa dose de inquietação: o que acontece quando um sistema se recusa a admitir que somos contraditórios? Ao explorar esse dilema, a narrativa transcende o conforto da fábula tradicional e se aproxima de questões morais mais densas, tocando em feridas como exclusão social, o culto à imagem e os perigos de uma pedagogia que domestica afetos em nome da ordem.
O filme navega entre o deslumbramento e a estranheza. Se os efeitos especiais nem sempre impressionam, a direção de arte se encarrega de construir um universo onde o sublime e o grotesco convivem em equilíbrio tenso. Há algo de teatral no modo como os figurinos operam como extensões das identidades, e os cenários — assinados por Andy Nicholson — funcionam como metáforas visuais para os dilemas internos dos personagens. Um destaque particular vai para os híbridos meio-lobos que guardam os portões da escola, cuja concepção une técnica prática e CGI com inteligência rara, conferindo-lhes um aspecto perturbadoramente humano.
No centro desse universo fragmentado estão as atuações de Sofia Wylie e Sophia Anne Caruso. Wylie, como Agatha, oferece uma performance ancorada na sutileza — cada gesto carrega uma tensão interna que não precisa ser verbalizada. Já Caruso, diante de uma personagem escrita com menos camadas, consegue extrair nuances emocionais ao revelar a fragilidade que habita sob o verniz da vaidade. Juntas, as duas constroem uma relação que vai além da simples amizade: elas representam o embate entre desejo e recusa, entre idealização e desilusão, entre espelho e reflexo estilhaçado.
O elenco secundário acrescenta outras texturas à fábula. Charlize Theron diverte e impõe presença como a diretora da Escola do Mal, canalizando ecos de personagens anteriores, sem jamais soar repetitiva. Kerry Washington, por sua vez, empresta à diretora do Bem uma rigidez que beira a caricatura, mas que se alinha à lógica do universo maniqueísta em que está inserida. Laurence Fishburne e Michelle Yeoh surgem como figuras quase mitológicas, preenchendo lacunas simbólicas mesmo sem tanto tempo de tela. O conjunto contribui para uma atmosfera que, embora caótica em alguns momentos, nunca perde seu centro gravitacional: o vínculo entre as duas protagonistas.
Mas o aspecto mais provocador do filme talvez está na sua decisão de não escapar do que o torna previsível. Sim, há exageros, melodrama e clichês — e é justamente nesse terreno instável que o longa planta sua honestidade. Ao invés de tentar se disfarçar de algo que não é, a obra se apropria de seus próprios excessos para criar um espaço de afeto e identificação. Essa escolha não busca inovar o gênero, mas reencantá-lo, lembrando ao espectador que as histórias mais contadas ainda carregam, em suas repetições, a capacidade de comover — desde que sejam narradas com autenticidade.
A magia, portanto, não está na reinvenção radical, mas na coragem de abraçar a imperfeição como forma de expressão. E é nesse paradoxo — entre o familiar e o desajustado, entre o conto de fadas e a ferida contemporânea — que “A Escola do Bem e do Mal” encontra sua identidade. Um filme que não pretende salvar o mundo, mas que entende que, para algumas pessoas, o simples ato de ser visto já é o início de toda salvação.
★★★★★★★★★★