Quanto mais se revira o baú da História, mais encontram-se fragmentos da barbárie perpetrada durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os bombardeios da Alemanha nazista à Grã-Bretanha logo após declarada a guerra espalharam terror entre a população, abrigada em túneis subterrâneos e bunkers enquanto as autoridades, também confusas, decidiam o que deveria ser feito. O medo de Hitler levou 1,25 milhão de pessoas a evacuar suas casas e procurar lugares que parecessem mais seguros, o que muitas vezes significava sair com a roupa do corpo, abandonar tudo e tentar um difícil recomeço em alguma outra cidade, quase sempre depois de separações forçadas que não reparar-se-iam nunca.
“Blitz” se propõe a esmiuçar os efeitos da Segunda Guerra sobre o Reino Unido do ponto de vista de uma família birracial, com as consequentes associações que Steve McQueen faz como poucos. McQueen recorre a seu próprio repertório para chegar aonde quer, mas seu filme fica bem longe da autorreferência ao abraçar tópicos que recusam a inércia e conversam entre si, o que resulta num conto altissonante de dor e esperança.
Rita vive com o pai, Gerald, e George, o filho de nove anos, num bairro de classe trabalhadora já quase inteiramente arruinado pelas bombas alemãs. Na abertura, o diretor-roteirista faz questão de situar o público na improvável serenidade desse lar, com Rita mantendo conversas ternas com George enquanto Gerald toca um velho piano ao lado do gato Ollie, todavia desconfie que logo essa harmonia desvanecer-se-á, uma vez que os confrontos pioram a olhos vistos. Rita termina por se convencer de que o mais sensato a ser feito é despachar o menino para um alojamento do exército, para onde George vai numa locomotiva, mas o que não poderia prever é que ele saltaria do trem antes de chegar ao novo destino num esforço desesperado de fugir e voltar para casa. Saoirse Ronan, Paul Weller e Elliott Heffernan compõem esse núcleo atentos às variações de tensão pontuadas pela trilha de Hans Zimmer; quando sabe o que aconteceu, Rita deixa o emprego de tecelã numa fábrica das redondezas para dedicar-se em tempo integral ao resgate de George, ajudada por Jack, o soldado vivido por Harris Dickinson. Outro soldado, Ife, é quem assiste a criança num campo de refugiados, mote para reflexões mais específicas.
“Blitz” estabelece pontos de contato com “Oliver Twist” (1838), o romance histórico de Charles Dickens (1812-1870), sem prescindir de sua identidade, sobretudo no que toca ao discurso do letramento racial. Ao conhecer Ife, George nega sua origem, mas diante de circunstância bastante peculiar, chama o homem que o salvou, um preto retinto, e volta atrás, orgulhoso de ser o que é. A parceria entre George e Ife ocupa boa parte do longa, mas Benjamin Clémentine brilha por si só, conduzindo o enredo a um destino melancólico, mas cuja verdade ninguém pode contestar.
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