Há algo profundamente perturbador na inversão de uma promessa. Quando um símbolo de salvação se transmuta em ameaça, não apenas um mito é corrompido — uma expectativa coletiva é implodida. “Brightburn: Filho das Trevas” não busca suavizar esse processo; pelo contrário, mergulha nele com crueldade meticulosa. Em um ambiente saturado por narrativas heroicas previsíveis, o filme impõe uma ruptura: e se aquele que deveria nos proteger fosse, na verdade, a encarnação do terror? Mais que uma paródia sombria do Superman, a história de Brandon Breyer é uma negação agressiva do conforto mitológico que a cultura pop insistiu em nos oferecer.
A força da narrativa não está em explicar, mas em permitir o colapso da esperança como um evento inevitável. O roteiro se recusa a investir em justificativas psicológicas ou eventos traumáticos que pudessem humanizar o protagonista. Esse vazio de motivação — esse mal que não decorre de um erro, mas de uma natureza intrinsecamente estranha — torna tudo mais angustiante. Brandon não é um garoto incompreendido. Ele é uma entidade indecifrável, revestida da aparência da inocência humana apenas para amplificar o impacto de sua desumanidade. O que o filme sugere, de forma incômoda, é que o mal pode nascer sem explicação, sem origem nobre corrompida, sem lógica alguma — e, por isso, talvez seja o mal mais puro de todos.
Ao renunciar ao arco clássico do herói ou mesmo do anti-herói, “Brightburn” desconstrói não apenas um personagem, mas o próprio alicerce moral que sustenta o gênero de super-heróis. Não há aqui dilemas éticos, lições de responsabilidade ou redenção possível. A curva de Brandon não é uma descida ao abismo — é uma revelação de que ele já nasceu no fundo dele. E o mais assustador: ninguém o empurrou. O casal que o adota, vivido com intensidade emocional por Elizabeth Banks e David Denman, representa a última âncora da humanidade tentando negar o naufrágio iminente. Eles não são ingênuos — são desesperadamente humanos, presos ao desejo de que o amor seja suficiente para conter o incontrolável. Mas o filme é impiedoso: nem o afeto mais devotado é capaz de deter o que nunca foi humano para começar.
A estética do filme corrobora essa visão sem concessões. As cenas de violência não são estilizadas, mas brutais em sua frieza. Há um desconforto particular na forma como a câmera insiste no realismo do grotesco, como se quisesse lembrar que não há catarse possível — apenas choque. A direção de David Yarovesky opera com precisão nesse equilíbrio entre o terror físico e o psicológico, enquanto a produção de James Gunn acentua a atmosfera de paranoia crescente. O horror aqui não é apenas o que se vê, mas o que se conclui: a constatação de que o mal pode ser absoluto, e que nossos modelos narrativos são frágeis demais para contê-lo.
É notável, também, a escolha de jamais oferecer ao espectador uma válvula de escape. Não há um personagem salvador, um plano mirabolante, um sacrifício redentor. A progressão do enredo não conduz a um clímax moral — conduz a um colapso inevitável. E talvez seja aí que o filme atinja sua potência mais incômoda: ao se recusar a propor esperança. O olhar final de Tori, dilacerada entre o instinto materno e o reconhecimento do que criou, é mais devastador do que qualquer cena de destruição. É a expressão de um mundo que não está sendo invadido por forças externas, mas corroído desde dentro por algo que já estava aqui, sob o nosso teto, deitado em nossos braços.
Mesmo aqueles que questionam a previsibilidade de certos sustos ou a ausência de uma construção mais complexa do universo narrativo talvez estejam buscando no filme aquilo que ele deliberadamente nega: estrutura, sentido, alívio. “Brightburn” não deseja ser uma franquia nem um manifesto. Ele é, antes de tudo, um gesto de negação — à esperança, ao mito, à ordem narrativa. E nesse gesto há uma coragem rara: a de abandonar o espectador não com uma resposta, mas com um vazio cuidadosamente cultivado.
O filme não apenas questiona o arquétipo do herói; ele interroga nossa necessidade de acreditar nele. Porque se olharmos com atenção suficiente, talvez percebamos que o céu — aquele mesmo céu para onde nossos heróis costumam voar — pode esconder mais do que salvadores. Pode ser também a origem de nossa ruína. E quando o mal desce das estrelas com a face de uma criança, talvez o mais honesto a fazer seja parar de esperar por milagres e começar a temer o que ainda não compreendemos.
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