Pedro Almodóvar, mestre da excentricidade e da emotividade exuberante, experimenta um salto arriscado em “O Quarto ao Lado” ao optar por um idioma que lhe é estranho. O inglês, escolhido como meio de expressão integral pela primeira vez em sua carreira, impõe um filtro inusitado sobre sua linguagem cinematográfica: aquilo que antes era fluidez visceral se torna, aqui, uma formalidade controlada. A musicalidade do espanhol, tão entrelaçada à tensão afetiva de seus personagens, é substituída por um ritmo discursivo que parece conter, ao invés de revelar, a alma do filme. A tradução linguística se reflete também numa tradução emocional, onde o drama não explode, mas hesita; não sangra, apenas pulsa discretamente.
Esse deslocamento não é apenas fonético ou geográfico, é estético. O texto adaptado do romance de Sigrid Nunez abraça o discurso com uma voracidade que engessa. As personagens, ao invés de viverem suas contradições em silêncios ou gestos ambíguos, verbalizam tudo o que sentem, como se o roteiro desconfiasse da inteligência do olhar do espectador. Flashbacks inseridos com didatismo interrompem o fluxo narrativo, como anotações de rodapé que se tornaram corpo do texto. A linguagem visual, que sempre foi o condutor instintivo do cinema de Almodóvar, é aqui subordinada à palavra dita.
No centro dessa tentativa contida de catarse estão Tilda Swinton e Julianne Moore, acompanhadas por John Turturro, em atuações que tentam ultrapassar os limites impostos pelo verbo. Swinton, com sua presença espectral e olhar em suspensão, trava um embate silencioso com a necessidade de verbalização constante. Sua dor, mais potente quando insinuada, é forçada a se traduzir em monólogos meticulosamente entonados, que paradoxalmente dissipam a intensidade emocional. Moore, por sua vez, encontra na rigidez da estrutura uma contenção que mina sua habitual fluidez. O elenco não fracassa; ele sobrevive, resiste, abriga brechas de humanidade onde o roteiro tenta nivelar o que deveria ser contraditório.
A casa onde as personagens se isolam é um santuário de luz e silêncio. Mais do que um espaço, ela é um tempo suspenso, um entre-lugar onde a despedida não é ritual, mas convivência. A eutanásia, mote central da trama, é tratada sem escândalo, mas também sem o abismo ético e existencial que poderia torná-la dilacerante. Almodóvar, ainda que longe do seu fulgor habitual, não abandona completamente sua sensibilidade: ela aparece nas flores que decoram os cômodos, nos vestidos que evocam pinturas, na tentação de fixar o efêmero em planos esteticamente milimetrados. Há ecos de Bergman, sobretudo de “Persona”, na construção simbólica da simbiose entre as duas mulheres. Mas onde Bergman mergulha no inconsciente com crueldade poética, Almodóvar aqui apenas roça a superfície do conflito.
A cinefilia, presente como subtexto, assume a forma de homenagem referencial. Almodóvar cita Keaton, Rossellini e Hopper, mas o faz com uma literalidade que empobrece a potência do gesto. É como se o filme sentisse a necessidade de se justificar diante de uma plateia nova, oferecendo chaves interpretativas que um espectador mais sensível dispensaria. O que poderia ser uma metalinguagem elegante torna-se um mecanismo explicativo que fere a inteligência do não dito.
O que resta é um filme atravessado por intenções nobres e resultados desiguais. Não há desastre, mas tampouco há redenção. “O Quarto ao Lado” não é um fracasso, mas um interregno: uma pausa na trajetória de um autor em busca de um novo idioma para suas paixões antigas. A experiência, embora frustrante em vários níveis, revela-se também como um gesto de coragem: o de tentar traduzir, sem sucesso pleno, uma linguagem afetiva que talvez não tenha equivalente fora de sua matriz original. O que nos resta é esperar que este desvio sirva como um espelho invertido, capaz de devolver ao cineasta a urgência criativa que sempre fez da imperfeição sua assinatura mais comovente.
★★★★★★★★★★