Ela já foi chamada de a maior comédia romântica da história — e agora está no Prime Video Bettman / Metro-Goldwyn-Mayer

Ela já foi chamada de a maior comédia romântica da história — e agora está no Prime Video

Durante uma década em que o cinema americano parecia fascinado pela hipérbole, entre fábulas misóginas travestidas de épicos e relações masculinas embrutecidas por testosterona e efeitos visuais, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” revelou-se um gesto de insubordinação estética. Woody Allen, com a meticulosidade de um entomologista urbano, dissecou não apenas o relacionamento entre Alvy e Annie, mas a própria ideia de romantismo em uma era em que o amor havia sido terceirizado à superficialidade ou à idealização histérica. Aqui, o sentimento não é um clímax, mas um ruído constante — uma série de microchoques emocionais que se sucedem com a precisão de um sismógrafo afetivo. Allen, mais do que contar uma história, estrutura uma espécie de autópsia poética das relações modernas: o cotidiano como campo de batalha das neuroses, e a memória como a única forma possível de permanência.

A genialidade do filme está em sua habilidade de extrair densidade de elementos que a maioria descartaria como triviais. A narrativa, solta como uma conversa que se prolonga demais e só depois revela seu propósito, desenvolve-se por vinhetas que funcionam como brechas no tempo: a fila para o cinema, os jantares sem entusiasmo, as discussões minúsculas que se tornam abismos. Nada ali grita; tudo corrói. A câmera não observa os personagens: ela os interroga. Nova York, convertida em espécie de lente expandida do protagonista, amplifica sua misantropia como se fosse uma extensão física da angústia. E quando Annie decide partir, não há gesto heroico, nem apelo emocional. A separação não é falha — é o único desfecho coerente para uma relação que nasceu da tentativa de moldar o outro ao próprio vazio.

Esse esvaziamento afetivo é tratado com uma honestidade que desafia o sentimentalismo habitual do gênero. Woody Allen, longe de maquiar sua própria insegurança, a expõe com desconfortável transparência. Ele constrói uma persona que simultaneamente provoca empatia e irritação: é o sujeito que se sabota antes mesmo de ser rejeitado. Annie, por sua vez, embora enredada nas mesmas inseguranças, recusa a clausura emocional e escolhe o risco. É significativo que, mesmo nos momentos de maior tensão, ela preserve uma leveza que não é superficial, mas subversiva — uma recusa em transformar a dor em moeda dramática. Diane Keaton infunde à personagem uma espontaneidade deliberadamente desorganizada, como se desafiasse a própria lógica do roteiro. Ela não interpreta Annie; ela a implode e reconstrói com cada gesto imprevisto.

A estrutura fragmentária do filme não resulta de experimentalismo gratuito, mas de um entendimento profundo de como a memória opera: descontínua, enviesada, muitas vezes cruel. As quebras da quarta parede, os flashbacks e as reinterpretações ficcionalizadas de eventos passados não são recursos cômicos — são mecanismos de defesa, falhas no sistema de negação afetiva de Alvy. Ao recorrer a dispositivos típicos de Bergman, Allen articula uma comédia com o peso emocional de um drama existencial. Há, de fato, uma tristeza subterrânea que permeia cada piada, como se o riso fosse sempre uma maneira de adiar o colapso. Não se trata de humor fácil, mas de uma ironia construída sobre camadas de desesperança refinada. A constatação de que mesmo as melhores lembranças não escapam do desgaste é o que torna o filme tão desconcertante.

Essa desilusão elegante se estende também à construção estética. A fotografia de Gordon Willis não embeleza, mas captura — como se cada cena fosse uma tentativa de preservar algo prestes a se dissolver. A montagem de Ralph Rosenblum não busca fluidez narrativa, mas uma coerência emocional rarefeita, ajustando o tempo fílmico às hesitações da consciência. Os coadjuvantes, mais do que figurantes, funcionam como sombras das escolhas que Alvy e Annie evitam fazer: o amigo que nunca amadurece, o interesse amoroso que nunca compete à altura, a família que escancara incompatibilidades irreversíveis. Tudo isso compõe uma geografia afetiva em que cada deslocamento revela a impossibilidade de um ponto de chegada. O amor, aqui, não é um porto seguro, mas um trajeto que só faz sentido quando já foi percorrido — e perdido.

Recusando o conforto das respostas, Allen encerra o filme com uma confissão ambígua: insistimos nas relações não porque funcionam, mas porque precisamos acreditar que um dia funcionarão. A metáfora dos ovos — usada como uma espécie de alívio cômico tardio — é, na verdade, uma sentença irônica sobre nossa compulsão por repetir padrões disfuncionais. Em última instância, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” não busca consolar, nem celebrar. Seu triunfo está em admitir que, apesar de tudo, seguimos tentando. Porque mesmo as relações mais fracassadas ainda carregam instantes que valem ser lembrados — e revividos, ainda que só na ficção.

Filme: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa
Diretor: Woody Allen
Ano: 1977
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★