Você pode até zombar de Nicolas Cage — mas esse filme vai sair da Netflix antes que você descubra que ele ainda tem bala na agulha Divulgação / Splendid Film

Você pode até zombar de Nicolas Cage — mas esse filme vai sair da Netflix antes que você descubra que ele ainda tem bala na agulha

A obsessão por restaurar o que o tempo corroeu é, paradoxalmente, um dos motores mais vigorosos da ficção sobre vingança — e também o mais melancólico. Em “Ajuste de Contas”, essa pulsão ganha contornos mais instáveis e vertiginosos ao se deparar com a deterioração mental e física de seu protagonista, um ex-criminoso que passou duas décadas enclausurado em nome de uma lealdade cega e sem garantias. Ao evocar a decadência como personagem silenciosa, o filme insinua que a violência não é mais resposta, mas último recurso de quem já perdeu qualquer domínio sobre sua própria história. Nicolas Cage, com sua habitual combustão performática, encarna Frankie Carver como se encenasse uma tragédia interior que nunca se verbaliza por completo. Em vez de uma jornada clássica de acerto de contas, o que se vê é uma peregrinação errática por entre ruínas — emocionais, morais, temporais — em busca de alguma ilusão de coerência, ou talvez apenas de repouso.

A narrativa é construída como um campo minado entre alucinação e memória, numa linha tênue em que as cenas mais íntimas e afetuosas podem não passar de projeções de um cérebro exausto e entorpecido. Desde a prescrição médica inicial, que alerta Frank sobre os riscos devastadores da insônia, o espectador é instado a desconfiar da veracidade de tudo que se apresenta como reencontro, reconciliação ou ternura. Joey, o filho adulto que reaparece disposto a caminhar ao lado do pai, e Simone, a prostituta que oferece migalhas de consolo e carência encenada, talvez não sejam personagens propriamente vivos, mas arquétipos que Frank tenta reviver para escapar da consciência de que nada, de fato, lhe resta. A fragilidade dos vínculos, mesmo quando cuidadosamente coreografados, aponta para um abismo maior: o de um homem que já não possui chão nem testemunhas para validar sua existência.

Essa ambiguidade se torna o verdadeiro tecido do filme — não a vingança em si, mas o que sobra quando ela finalmente deixa de ser funcional. Frank circula entre a ostentação momentânea de dinheiro acumulado e a brutalidade improvisada de quem já não se importa com as consequências. Há uma ironia cruel em ver um velho criminoso tentando comprar de volta os rituais da juventude com dinheiro que, antes de tudo, simboliza o preço da sua prisão. Celulares de última geração, hotéis de luxo, conselhos amorosos do filho: tudo parece parte de uma tentativa desesperada de fingir que o tempo pode ser enganado. E quanto mais o filme avança, mais clara se torna a suspeita de que Frankie não busca justiça, mas autorização para deixar de lutar.

O roteiro, longe de se apoiar na dinâmica convencional dos thrillers de vingança, opta por um labirinto emocional e temporal em que os momentos de violência explícita servem menos à catarse do que à desorientação. A arma que move a trama, um bastão de beisebol que poderia ser símbolo de poder, parece deslocado, quase ridículo, diante da magnitude do colapso que se insinua em cada cena. A trilha sonora lírica, que sobrepõe árias dramáticas às sequências de confronto físico, reforça essa dissonância: não há triunfos aqui, apenas a coreografia final de um homem esvaziado. O filme convida o público a experimentar, junto de Frank, a lenta ruína de qualquer certeza, inclusive a de que o espectador ainda é capaz de distinguir o que é real do que é apenas desejo de reparação.

Mesmo os momentos mais sutis são atravessados por esse sentimento de deslocamento. Quando Frank experimenta o vento no rosto, num gesto que remete diretamente a “Con Air”, a memória do Cage jovem e insubordinado atravessa a cena como uma sombra zombeteira. O rosto envelhecido tenta reproduzir uma expressão de liberdade, mas agora ela soa como caricatura de um passado inatingível. Nesse pequeno gesto, o filme sintetiza sua tese mais incisiva: a liberdade tardia pode ser mais violenta que qualquer cela. E é justamente nesse ponto que “Ajuste de Contas” escapa da obviedade e toca algo mais profundo — a percepção de que há punições que não terminam com a soltura, e cárceres que continuam mesmo quando as grades já ficaram para trás.

A maior ousadia da narrativa talvez esteja em não oferecer redenção nem resolução clara. Ao flertar com o sobrenatural e com a ambiguidade psicológica sem jamais assumir nenhum dos dois completamente, o filme recusa qualquer zona de conforto. Nicolas Cage, em sua forma mais instável e fascinante, empresta ao personagem uma convicção que transforma até as passagens mais banais em declarações trágicas. Não é apenas a história de um homem que deseja vingança — é o retrato de alguém que já não sabe se vive ou apenas delira com a possibilidade de ter vivido. E, nesse ponto, o filme deixa de ser um exercício de estilo e se transforma em um espelho torto: não dos crimes cometidos, mas do que resta quando a ideia de justiça já perdeu o significado.

Filme: Ajuste de Contas
Diretor: Shawn Ku
Ano: 2019
Gênero: Ação/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★