Últimos dias dessa pérola cinematográfica que marcou atuação mais genial de Anthony Hopkins nos cinemas, na Netflix Divulgação / Film4 / Allstar

Últimos dias dessa pérola cinematográfica que marcou atuação mais genial de Anthony Hopkins nos cinemas, na Netflix

A fragmentação da memória, o colapso da identidade e o terror silencioso de perder o fio da realidade são os alicerces de “Meu Pai”, filme que, mais do que retratar a demência, a encarna. Adaptado da peça homônima de Florian Zeller, o longa se destaca não por explicar a doença, mas por mergulhar visceralmente na mente de quem a vivencia. Em outra narrativa, este poderia ser um filme de horror psicológico — e talvez o seja, pois há algo profundamente assustador em ver o mundo se dissolver enquanto ainda se está consciente o suficiente para perceber a perda. O personagem-título, Anthony, interpretado com devastadora maestria por Anthony Hopkins, se desloca entre cenas e rostos que mudam sutilmente, entre cômodos que parecem idênticos, mas não são, entre lembranças fragmentadas que ora acolhem, ora traem. Estamos dentro da mente de alguém que está se apagando, e é justamente aí que o filme atinge seu ápice narrativo e emocional.

Ao optar por uma perspectiva que parte de dentro do colapso cognitivo, Zeller desorienta o espectador com a mesma intensidade com que a realidade escapa de Anthony. A estratégia narrativa de alternar atores para os mesmos personagens, remodelar ambientes já vistos e inverter a cronologia dos acontecimentos não tem como finalidade confundir gratuitamente, mas sim desintegrar qualquer segurança narrativa – assim como a doença faz com sua vítima. A filha de Anthony, Anne (vivida por Olivia Colman), também se perde nesse labirinto, não apenas na tentativa de cuidar do pai, mas também na luta íntima por preservar um resquício de sua própria vida, que a espera em Paris. A cada tentativa de organizar o caos — como ao buscar o relógio escondido de Anthony ou ao apresentar-lhe uma nova cuidadora —, tudo se desfaz novamente, como areia entre os dedos. Essa repetição exaustiva e dolorosa não é apenas parte do roteiro; é a experiência real de quem convive com a demência, seja no papel de paciente ou de cuidador.

Mas o coração do filme não está na estrutura engenhosa — por mais meticulosa que seja — e sim na carga emocional que ela carrega. Hopkins entrega uma atuação de raríssimo brilho, onde cada inflexão vocal, cada gesto contido, carrega o peso de alguém que oscila entre lampejos de lucidez e mergulhos profundos em um vazio assustador. Sua performance é tão poderosa que transcende a tela, colocando o espectador em estado de vulnerabilidade constante. Em uma das cenas mais marcantes, durante uma conversa aparentemente leve com a nova cuidadora Laura (Imogen Poots), Anthony passa da doçura à crueldade em segundos, revelando o quanto sua percepção está à mercê da deterioração neurológica. Não há previsibilidade, nem mesmo conforto. Cada cena é um novo teste para o público, que aprende a sentir mais do que compreender.

Zeller, que escreveu o papel com Hopkins em mente, consegue fazer de um espaço limitado — praticamente todo o filme se passa dentro de um apartamento — um universo em expansão emocional. A sensação de claustrofobia é contrabalançada por uma direção que transforma cada cômodo, cada mudança de luz, em novos fragmentos da consciência de Anthony. O uso recorrente da música clássica, favorita de Hopkins, não só aprofunda a atmosfera emocional como atua como uma âncora afetiva num mar de desorientação. E mesmo sendo uma adaptação de uma peça teatral, “Meu Pai” evita os vícios do palco ao explorar com fluidez cinematográfica a intimidade dos espaços e a riqueza de seus silêncios. Zeller rompe com a convenção dos filmes sobre demência, que geralmente se concentram na dor dos que cercam o paciente. Aqui, o sofrimento parte do centro e se irradia para todos os lados.

A pergunta fundamental que o filme lança ao público  — “Como reagimos quando não sabemos mais o que é real?”  — não encontra resposta fácil, tampouco se pretende encontrar. A intenção de Zeller é que desistamos de buscar certezas e passemos a experimentar, a sentir. A experiência de assistir ao filme, portanto, espelha a experiência do personagem: desorientadora, desconcertante, inevitável. Como espectadores, somos empurrados para a beira do abismo junto com Anthony, e de lá contemplamos, impotentes, o desmoronamento daquilo que nos faz ser quem somos. É um exercício de empatia radical, que nos força a viver o não-saber, o não-reconhecer, o não-conseguir mais retornar.

Resta-nos não a compreensão, mas a compaixão. O desfecho do filme, ao mesmo tempo delicado e arrasador, desponta como um momento de rendição: Anthony, agora frágil e perdido, pede por sua mãe. É nesse instante que se revela toda a humanidade da obra. Não há nada mais devastador do que ver um homem outrora forte, inteligente e orgulhoso ser reduzido a um pedido infantil de acolhimento. E não há, talvez, nada mais honesto. “Meu Pai” entrega, com didatismo raro, uma vivência cinematográfica que nos marca profundamente — sobretudo porque sabemos, no fundo, que este espelho trincado pode refletir a todos nós.

Filme: Meu Pai
Diretor: Florian Zeller
Ano: 2020
Gênero: Drama/Mistério
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★