Olivia Colman e Colin Firth: realeza do cinema inglês em tesouro inestimável que chegou na Netflix Divulgação / Hulu

Olivia Colman e Colin Firth: realeza do cinema inglês em tesouro inestimável que chegou na Netflix

Não é o tempo que organiza a narrativa de “O Domingo das Mãe”, mas sim a memória — essa entidade caprichosa que ignora cronologias e reinventa passados com a liberdade de um romancista experiente. Eva Husson, ao adaptar o romance de Graham Swift, escapa deliberadamente das armadilhas do drama histórico tradicional e encontra, nesse desvio, sua maior potência. Ao invés de alinhar eventos em sequência, a diretora os entrelaça como fragmentos de uma consciência em estado de ebulição. O resultado é menos um filme sobre um dia e mais uma dissecação sensível de como a ausência, o desejo e a escrita se misturam em uma única identidade em formação.

Jane Fairchild, interpretada com notável intensidade por Odessa Young, não é uma personagem contada ao espectador: ela se constrói a partir do que não diz, do que observa e do que retém. Seu passado de orfandade e sua condição de criada não são exploradas como lamentações sociais, mas como silêncios estruturais que definem sua relação com o mundo. É nesse vazio que floresce a força de sua subjetividade — uma força que se revela plenamente no breve, mas inesquecível, encontro com Paul Sheringham (Josh O’Connor), jovem aristocrata que parece tão aprisionado por sua linhagem quanto ela é invisível por sua condição.

Seria fácil rotular esse episódio como mais um clichê de amores impossíveis. No entanto, Husson trata o acontecimento com uma radicalidade formal e emocional que impede qualquer leitura superficial. A nudez dos corpos, por exemplo, não é mero erotismo estético, mas expressão da urgência de existir fora das convenções. A câmera não observa com voyerismo: ela participa da intimidade, dissolvendo hierarquias entre olhar e pele, entre espectador e lembrança. Nesse aspecto, o filme se afasta do conforto previsível dos dramas de época e adquire uma dimensão política silenciosa — a de subverter a narrativa dominante não com revolta explícita, mas com uma poética da desobediência íntima.

A decisão de construir o filme em três tempos — juventude, maturidade e velhice — poderia cair na armadilha de um ciclo didático. Mas “O Domingo das Mães” evita esse risco ao utilizar as passagens temporais como reverberações emocionais, não como marcos históricos. A Jane mais velha (vivida com gravidade por Glenda Jackson) não é uma versão concluída da jovem, mas uma extensão melancólica do mesmo desejo não domesticado. A escrita, nesse contexto, aparece não como catarse, mas como transfiguração: aquilo que não pôde ser dito, vivido ou mantido se torna palavra — palavra que fixa o efêmero, que recusa o esquecimento.

O filme atinge um equilíbrio raro entre elegância pictórica e expressividade subjetiva. A fotografia naturalista, pontuada por tons suaves e luzes que parecem flutuar, transforma o interior inglês em um espaço quase mítico — não no sentido da grandiosidade, mas na capacidade de acolher o sublime do banal. As locações não apenas situam a trama, mas ampliam o drama interior dos personagens. A trilha sonora de Morgan Kibby atua nesse mesmo registro: não ilustra, mas acompanha, criando respiros entre os silêncios que dizem mais do que os diálogos.

Nesse ambiente de repressão educada e luto camuflado, os personagens secundários ganham uma densidade rara. Olivia Colman e Colin Firth, como os Srs. Niven, não funcionam como simples figuras de apoio, mas como espelhos trincados da dor contida que permeia toda a aristocracia britânica. A rigidez de Colman e a gentileza enlutada de Firth não precisam de grandes monólogos para dizer tudo: basta um olhar desviado ou um gesto interrompido para expor o colapso emocional sob o verniz da civilidade. É na convivência entre esses gestos e a juventude pulsante de Jane que o filme encontra seu campo de tensão mais potente.

A comparação com “O Amante de Lady Chatterley” é inevitável, mas também insuficiente. Se naquele texto o escândalo era a linguagem do desejo, aqui é o silêncio que grita. Enquanto D.H. Lawrence constrói sua transgressão no embate direto com a ordem social, Husson prefere minar essa ordem por dentro, utilizando a fragilidade como força e a ausência como motor narrativo. Jane não desafia as regras de forma explícita: ela simplesmente existe apesar delas. E talvez seja justamente por isso que sua história reverbere com tanta força — porque ela não precisa vencer ninguém, apenas se afirmar como presença.

Do ponto de vista narrativo, a montagem fragmentada exige um espectador ativo, disposto a conectar sensações antes de eventos. A cronologia é desmontada não por capricho, mas porque o tempo, nesse universo, é um organismo vivo, permeado por lacunas e repetições. É nesse terreno instável que a memória se instala — não como arquivo, mas como força criadora. Quando Jane se lembra daquele domingo, ela não reconstrói fatos: ela os reimagina à luz do que se tornou. A dor não é uma cicatriz, mas um pigmento que colore toda a sua identidade.

É nesse ponto que o filme atinge sua maturidade plena: ele entende que o luto não é uma interrupção, mas uma linguagem. A perda, nesse universo, não paralisa — ela redefine. E se o filme se aproxima por vezes do sentimentalismo, é apenas porque se recusa a amputar a emoção em nome da frieza analítica. Essa escolha, arriscada, é também sua virtude: *Domingo de Mãe* não pretende ser imparcial, e sim verdadeiro. E, na arte, a verdade raramente é linear ou objetiva — ela é sentida, evocada, intuída.

Reduzir o filme a um mero relato sobre amor e despedida seria uma injustiça com sua complexidade. O que Eva Husson propõe é uma meditação sobre como momentos breves, quase insignificantes aos olhos do mundo, podem fundar inteiras cosmovisões subjetivas. A história de Jane não é exemplar porque é extraordinária, mas porque revela a extraordinária potência do íntimo. Em um cinema que frequentemente confunde profundidade com grandiloquência, “O Domingo das Mães” se destaca por sua aposta no pequeno — no gesto que escapa, no sussurro que permanece, na lembrança que insiste. E é justamente por não gritar que o filme ecoa — não como ruído, mas como revelação.

Filme: Domingo das Mães
Diretor: Eva Husson
Ano: 2021
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★