Sergio Leone não filmou apenas um western com “Era uma Vez no Oeste” — ele cravou uma lápide poética no coração do gênero. Ao transformar o faroeste em espetáculo mitológico, Leone fez do cinema uma liturgia fúnebre: cada imagem é um lamento, cada silêncio é um presságio. O diretor italiano extraiu lirismo da aridez do deserto e construiu, sobre os escombros da violência, uma narrativa carregada de elegância trágica. Não se trata apenas de uma história sobre pistoleiros e vingança, mas de uma reflexão sobre a extinção de um mundo. O Velho Oeste, aqui, já não é mais um lugar: é um fantasma prestes a se dissolver com o apito distante de um trem.
A trama que se desenha sob o sol escaldante de Utah parece, à primeira vista, simples: uma mulher chega a uma cidade empoeirada para começar uma nova vida ao lado do marido recém-desposado, mas é empurrada, contra sua vontade, para o centro de uma disputa por terras, heranças e poder. Contudo, sob a superfície clássica do enredo, pulsa um tecido simbólico mais denso, que reconfigura os arquétipos do western. Jill McBain, interpretada por Claudia Cardinale, não é apenas a viúva em perigo. Ela representa a permanência feminina em um território de transição, onde homens se extinguem e o progresso chega com trilhos metálicos e interesses corporativos. Sua presença é o ponto de inflexão que desestabiliza todos ao redor — do pistoleiro silencioso Harmonica ao implacável assassino Frank, passando pelo bandido romântico Cheyenne.
Leone, ao lado dos roteiristas Dario Argento e Sergio Donati, eleva os clichês do faroeste à condição de épico operístico. A construção dos personagens não visa ao realismo psicológico, mas à criação de figuras quase mitológicas, prestes a desaparecer com a chegada da ferrovia. Harmonica, vivido com contenção por Charles Bronson, não é um homem: é uma memória, uma ferida que caminha. Frank, interpretado por Henry Fonda em sua única incursão como vilão, simboliza a decadência moral de um sistema que se julgava eterno. E Cheyenne, sempre à margem, carrega nas costas o charme e a derrota dos que sabem que não há mais lugar para eles. Jill, por sua vez, rompe com o destino reservado às mulheres do gênero e se ergue como o novo pilar daquele mundo em ruínas.
Visualmente, “Era uma Vez no Oeste” é um tratado sobre o tempo. Leone estica o instante até o limite, transformando gestos banais em rituais carregados de tensão. A célebre sequência de abertura, em que três pistoleiros aguardam a chegada de um trem, exemplifica essa obsessão com o silêncio, com o intervalo entre a ação e a reação. O tempo não corre: ele pesa. E nesse peso, o diretor constrói uma coreografia da iminência, onde o som da madeira rangendo ou o zumbido de uma mosca valem tanto quanto o estrondo de uma pistola. O faroeste aqui se converte em dança fúnebre — não pela pressa, mas pela solenidade.
A trilha sonora de Ennio Morricone é mais do que um acompanhamento: é uma entidade viva que molda o filme por dentro. Cada personagem carrega um tema musical que o define: a gaita espectral de Harmonica, os acordes duros de Frank, a melodia lírica de Jill. Morricone e Leone operam em simbiose absoluta, criando uma linguagem cinematográfica em que som e imagem são indissociáveis. A trilha pontua não apenas emoções, mas estruturas narrativas inteiras. Ela antecipa, lembra e lamenta. É o fio invisível que costura a tragédia.
Se a trilogia dos dólares já havia mostrado o poder estilístico de Leone, “Era uma Vez no Oeste” revela sua maturidade absoluta. Aqui, ele não desconstrói o faroeste — ele o transforma em monumento. O duelo final entre Harmonica e Frank não é apenas um acerto de contas, mas um rito ancestral em que vingança e destino se fundem. Quando o passado é finalmente revelado, o espectador compreende que aquele disparo final não é uma vitória, mas uma liberação: o fim de um ciclo. Leone não exalta a violência; ele a ritualiza. Seu cinema não é espetáculo vazio, mas meditação encenada.
Mais do que marcar o fim do Velho Oeste, o filme antecipa o fim do próprio western como linguagem dominante no cinema. “Era uma Vez no Oeste” é, portanto, um testamento. Um filme sobre fim de eras — a era dos cowboys, dos heróis morais, da fronteira como mito. Mas também uma elegia sobre a transição do cinema clássico para uma modernidade em que o tempo narrativo se torna fragmentado, reflexivo, mais próximo da música do que da literatura. Não por acaso, cineastas como Quentin Tarantino, Christopher Nolan e Martin Scorsese reconhecem Leone como influência fundadora: eles herdaram seu domínio da estilização, sua reverência ao silêncio e sua capacidade de fazer o tempo pesar.
Ao final, a gaita de Harmonica ainda soa, como o eco longínquo de um mito que se recusa a morrer. “Era uma Vez no Oeste” não encerra apenas uma narrativa: encerra um mundo, um cinema, um imaginário. É o último ato de uma ópera trágica que não termina com aplausos, mas com reverência. E mesmo que o oeste tenha desaparecido, enquanto houver filmes, Leone continuará nos lembrando que alguns mitos não morrem — apenas se tornam silêncio.
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