Mel Gibson não retorna aos bastidores da direção apenas com uma câmera nas mãos. Ele volta com algo mais implacável: a urgência de quem sabe o que é ser desacreditado. Em “Até o Último Homem”, o cineasta parece querer provar, com cada quadro, que o cinema ainda pode ser instrumento de transcendência, e não apenas de distração. Abandona os artifícios que a indústria cultiva com zelo — filtros pasteurizados, efeitos que gritam mais do que sugerem — para edificar um retrato onde cada linha de expressão, cada sombra e cada gesto mínimo vibram com uma intensidade crua e irrevogável. Sua estética não busca adornos: ela cava. E, cavando, revela as entranhas de uma história que resiste a qualquer simplificação emocional.
A geografia visual do filme impressiona por sua franqueza. Não há nada gratuito no modo como a luz percorre os rostos dos personagens, nem nas escolhas de enquadramento que comprimem os corpos, como se o próprio espaço também estivesse sob cerco. Gibson filma o íntimo como quem documenta um campo de batalha interno. A proximidade dos closes — quase sufocantes — transforma os diálogos em confrontos silenciosos. A câmera não se posiciona como observadora, mas como cúmplice. Ela compartilha o peso das decisões, o medo diante do abismo e a fé que resiste mesmo quando tudo já parece devastado. Há algo de sagrado nesse olhar que se recusa a julgar, mas também não romantiza.
Nesse cenário, Desmond Doss não é esculpido como mártir nem como exceção moral. Ele é, antes, um ponto de ruptura na lógica narrativa que tradicionalmente glorifica o soldado armado. A recusa de Doss em tocar em um fuzil não é um gesto performático: é uma dissonância profunda que exige do espectador uma escuta rara. Sua obstinação é, ao mesmo tempo, uma crítica incisiva e um convite à revisão de conceitos consolidados sobre coragem e sacrifício. E o que poderia ser tratado como excentricidade vira eixo moral, sem que o filme se torne panfletário. Gibson respeita o tempo da transformação, o silêncio das dúvidas e a lentidão das convicções.
O primeiro ato, ancorado nos afetos familiares e na rigidez da caserna, é marcado por uma contenção que surpreende. A relação entre Doss e seu pai, vivido com precisão dilacerante por Hugo Weaving, evita os atalhos dramáticos e se desenvolve como um lamento prolongado — um homem esmagado pelas cicatrizes invisíveis da guerra tentando proteger seus filhos do mesmo destino. A dor que habita esse personagem não se pronuncia: ela vaza. Há mais verdade em seus silêncios do que em qualquer grande discurso. O mesmo se aplica ao romance entre Doss e Dorothy, que escapa das convenções do gênero ao abraçar a ingenuidade como uma forma legítima de resistência ao cinismo que o mundo impõe.
Quando o filme atravessa o oceano e desembarca em Okinawa, o que se vê não é um espetáculo de violência, mas uma imersão no colapso da ordem. As batalhas não são filmadas com frieza estratégica: são vividas como labirintos sensoriais onde a morte não apenas ronda, mas também confunde. O som dos tiros não ecoa como efeito, mas como sentença. Cada explosão parece carregar a memória de um nome, de um rosto, de uma escolha que não pôde ser desfeita. É nesse campo encharcado de lama e medo que Doss se torna indispensável. Não como salvador messiânico, mas como lembrete de que ainda é possível agir com compaixão mesmo quando tudo conspira para o oposto.
Gibson, aqui, alcança uma clareza brutal. Ao contrário de tantos filmes que tratam a guerra como um palco de bravura uniforme, “Até o Último Homem” transforma o caos em método. A coreografia dos corpos, o sangue que não estiliza mas denuncia, o tempo dilatado da urgência — tudo converge para criar uma experiência de exaustão, onde cada vida resgatada custa mais do que se pode medir. O impacto não vem da técnica, mas da lucidez. É uma narrativa que sangra e obriga o espectador a reconhecer que a glória, quando existe, não é encontrada nas vitórias, mas nos gestos de humanidade em meio ao colapso.
Andrew Garfield, em seu papel mais inquietante até então, recusa a grandiloquência. Seu Doss é um homem de hesitações e fragilidades, e é justamente isso que o torna inesquecível. A entrega do ator reside nos detalhes: no olhar que hesita, na voz que quase falha, na postura que se curva mas não cede. Hugo Weaving, por sua vez, ocupa a tela com uma presença que incomoda — não pela força, mas pela ruína que carrega. Até mesmo Vince Vaughn, cuja filmografia sugeriria outro tipo de registro, encontra nuances improváveis. É como se o elenco inteiro tivesse entendido que a grandeza do filme não estava nas palavras, mas nas entrelinhas.
Ainda assim, há escolhas que traem o fôlego que o filme parecia disposto a sustentar. A representação dos japoneses, por exemplo, resvala no apagamento. São corpos indistintos, privados de qualquer traço de subjetividade — uma massa sem rosto, cuja existência só se justifica como obstáculo. Essa desumanização dilui parte da potência da narrativa, pois impede que o conflito seja compreendido em toda sua complexidade. Da mesma forma, as personagens femininas, embora tratadas com alguma ternura, permanecem periféricas. Orbitam em torno dos protagonistas, mas jamais acessam o centro da ação. São vozes abafadas por uma engrenagem que, mais uma vez, privilegia o heroísmo masculino.
Nada disso, no entanto, compromete o que há de mais inquietante no filme: a convicção de que é possível fazer cinema como se faz pergunta. “Até o Último Homem” não responde com facilidade, nem busca consenso. Ele desafia, tensiona, expõe. E, nesse processo, marca o retorno não apenas de um diretor, mas de uma ideia de cinema que recusa a neutralidade. Mel Gibson não implora por absolvição. Seu gesto é outro: ele constrói uma narrativa onde a fé — qualquer fé — só vale se puder resistir ao peso do mundo real. E, ao fazer isso, obriga o espectador a enfrentar um paradoxo essencial: é possível vencer uma guerra sem matar?
★★★★★★★★★★