Dirigido por Mel Gibson e estrelado por Andrew Garfield, filme que vai te fazer enxergar uma luz na escuridão está na Max Divulgação / Summit Entertainment

Dirigido por Mel Gibson e estrelado por Andrew Garfield, filme que vai te fazer enxergar uma luz na escuridão está na Max

Mel Gibson não retorna aos bastidores da direção apenas com uma câmera nas mãos. Ele volta com algo mais implacável: a urgência de quem sabe o que é ser desacreditado. Em “Até o Último Homem”, o cineasta parece querer provar, com cada quadro, que o cinema ainda pode ser instrumento de transcendência, e não apenas de distração. Abandona os artifícios que a indústria cultiva com zelo — filtros pasteurizados, efeitos que gritam mais do que sugerem — para edificar um retrato onde cada linha de expressão, cada sombra e cada gesto mínimo vibram com uma intensidade crua e irrevogável. Sua estética não busca adornos: ela cava. E, cavando, revela as entranhas de uma história que resiste a qualquer simplificação emocional.

A geografia visual do filme impressiona por sua franqueza. Não há nada gratuito no modo como a luz percorre os rostos dos personagens, nem nas escolhas de enquadramento que comprimem os corpos, como se o próprio espaço também estivesse sob cerco. Gibson filma o íntimo como quem documenta um campo de batalha interno. A proximidade dos closes — quase sufocantes — transforma os diálogos em confrontos silenciosos. A câmera não se posiciona como observadora, mas como cúmplice. Ela compartilha o peso das decisões, o medo diante do abismo e a fé que resiste mesmo quando tudo já parece devastado. Há algo de sagrado nesse olhar que se recusa a julgar, mas também não romantiza.

Nesse cenário, Desmond Doss não é esculpido como mártir nem como exceção moral. Ele é, antes, um ponto de ruptura na lógica narrativa que tradicionalmente glorifica o soldado armado. A recusa de Doss em tocar em um fuzil não é um gesto performático: é uma dissonância profunda que exige do espectador uma escuta rara. Sua obstinação é, ao mesmo tempo, uma crítica incisiva e um convite à revisão de conceitos consolidados sobre coragem e sacrifício. E o que poderia ser tratado como excentricidade vira eixo moral, sem que o filme se torne panfletário. Gibson respeita o tempo da transformação, o silêncio das dúvidas e a lentidão das convicções.

O primeiro ato, ancorado nos afetos familiares e na rigidez da caserna, é marcado por uma contenção que surpreende. A relação entre Doss e seu pai, vivido com precisão dilacerante por Hugo Weaving, evita os atalhos dramáticos e se desenvolve como um lamento prolongado — um homem esmagado pelas cicatrizes invisíveis da guerra tentando proteger seus filhos do mesmo destino. A dor que habita esse personagem não se pronuncia: ela vaza. Há mais verdade em seus silêncios do que em qualquer grande discurso. O mesmo se aplica ao romance entre Doss e Dorothy, que escapa das convenções do gênero ao abraçar a ingenuidade como uma forma legítima de resistência ao cinismo que o mundo impõe.

Quando o filme atravessa o oceano e desembarca em Okinawa, o que se vê não é um espetáculo de violência, mas uma imersão no colapso da ordem. As batalhas não são filmadas com frieza estratégica: são vividas como labirintos sensoriais onde a morte não apenas ronda, mas também confunde. O som dos tiros não ecoa como efeito, mas como sentença. Cada explosão parece carregar a memória de um nome, de um rosto, de uma escolha que não pôde ser desfeita. É nesse campo encharcado de lama e medo que Doss se torna indispensável. Não como salvador messiânico, mas como lembrete de que ainda é possível agir com compaixão mesmo quando tudo conspira para o oposto.

Gibson, aqui, alcança uma clareza brutal. Ao contrário de tantos filmes que tratam a guerra como um palco de bravura uniforme, “Até o Último Homem” transforma o caos em método. A coreografia dos corpos, o sangue que não estiliza mas denuncia, o tempo dilatado da urgência — tudo converge para criar uma experiência de exaustão, onde cada vida resgatada custa mais do que se pode medir. O impacto não vem da técnica, mas da lucidez. É uma narrativa que sangra e obriga o espectador a reconhecer que a glória, quando existe, não é encontrada nas vitórias, mas nos gestos de humanidade em meio ao colapso.

Andrew Garfield, em seu papel mais inquietante até então, recusa a grandiloquência. Seu Doss é um homem de hesitações e fragilidades, e é justamente isso que o torna inesquecível. A entrega do ator reside nos detalhes: no olhar que hesita, na voz que quase falha, na postura que se curva mas não cede. Hugo Weaving, por sua vez, ocupa a tela com uma presença que incomoda — não pela força, mas pela ruína que carrega. Até mesmo Vince Vaughn, cuja filmografia sugeriria outro tipo de registro, encontra nuances improváveis. É como se o elenco inteiro tivesse entendido que a grandeza do filme não estava nas palavras, mas nas entrelinhas.

Ainda assim, há escolhas que traem o fôlego que o filme parecia disposto a sustentar. A representação dos japoneses, por exemplo, resvala no apagamento. São corpos indistintos, privados de qualquer traço de subjetividade — uma massa sem rosto, cuja existência só se justifica como obstáculo. Essa desumanização dilui parte da potência da narrativa, pois impede que o conflito seja compreendido em toda sua complexidade. Da mesma forma, as personagens femininas, embora tratadas com alguma ternura, permanecem periféricas. Orbitam em torno dos protagonistas, mas jamais acessam o centro da ação. São vozes abafadas por uma engrenagem que, mais uma vez, privilegia o heroísmo masculino.

Nada disso, no entanto, compromete o que há de mais inquietante no filme: a convicção de que é possível fazer cinema como se faz pergunta. “Até o Último Homem” não responde com facilidade, nem busca consenso. Ele desafia, tensiona, expõe. E, nesse processo, marca o retorno não apenas de um diretor, mas de uma ideia de cinema que recusa a neutralidade. Mel Gibson não implora por absolvição. Seu gesto é outro: ele constrói uma narrativa onde a fé — qualquer fé — só vale se puder resistir ao peso do mundo real. E, ao fazer isso, obriga o espectador a enfrentar um paradoxo essencial: é possível vencer uma guerra sem matar?

Filme: Até o Último Homem
Diretor: Mel Gibson
Ano: 2016
Gênero: Biografia/Drama/Guerra
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★