Aventura épica com Chris Hemsworth para quem ama literatura e Herman Melville, na Max Divulgação / Warner Bros.

Aventura épica com Chris Hemsworth para quem ama literatura e Herman Melville, na Max

Poucos filmes enfrentam julgamento tão enviesado quanto aqueles que se aproximam de um mito literário. “No Coração do Mar”, dirigido por Ron Howard, é vítima dessa armadilha: avaliado muitas vezes não por aquilo que oferece, mas pelo que supostamente deveria alcançar. Inspirado no naufrágio do baleeiro Essex — tragédia real que forneceu a Herman Melville a centelha para escrever “Moby Dick” — o longa se vê preso entre a crueza da história que o fundamenta e a sombra simbólica da obra que o ultrapassou. Mas, ao contrário do que sugerem certas leituras apressadas, há mais em jogo aqui do que a comparação entre um filme e um clássico da literatura. O que está em disputa é a nossa própria capacidade de vivenciar narrativas que não gritam, mas ressoam — não com grandiloquência, mas com densidade.

Ron Howard opta por uma abordagem quase arqueológica: escava um passado de brutalidade industrial e o reconstrói com precisão atmosférica. O mundo dos caçadores de baleia do século 19 é revelado não como pano de fundo épico, mas como estrutura viva, onde cada decisão é mediada pela sobrevivência, pela hierarquia e pelo peso de tradições ancestrais. Nesse contexto, o filme propõe uma imersão sensorial em mares revoltos, embarcações claustrofóbicas e dilemas que não se resolvem com heroísmos fáceis. Em vez de exaltar feitos, o roteiro se detém nos custos de cada escolha. A caça à baleia, longe de ser estetizada, é mostrada com sua violência íntegra, expondo a lógica extrativa de uma humanidade disposta a esvaziar oceanos para iluminar lâmpadas.

A estrutura narrativa se ancora no relato de Thomas Nickerson — interpretado por um Brendan Gleeson contido e expressivo — que, décadas depois do naufrágio, tenta traduzir em palavras uma experiência que beira o indizível. É através dele que o filme estabelece sua camada mais intrigante: o embate entre a memória traumática e o desejo de transformar a dor em narrativa. A presença de um jovem e ainda titubeante Herman Melville, que ouve mais do que fala, acentua essa tensão entre o vivido e o narrado. Nesse sentido, Howard não se limita a contar uma história; ele reflete sobre o próprio ato de contá-la. E ao fazer isso, insinua uma pergunta incômoda: até que ponto qualquer reconstrução — literária ou fílmica — consegue dar conta do que realmente aconteceu?

A rivalidade entre Owen Chase e George Pollard, interpretados por Chris Hemsworth e Benjamin Walker, atua como síntese dos conflitos sociais que regiam as relações à bordo: mérito contra hereditariedade, habilidade contra tradição, esforço contra status. Chase, como o homem que ascendeu por competência, carrega consigo a fúria de quem sempre precisou provar algo. Pollard, por sua vez, representa a arrogância de uma linhagem convencida de sua legitimidade. Nenhum dos dois é retratado como vilão ou herói — ambos estão mergulhados na complexidade de suas circunstâncias. A tensão entre eles não serve apenas à dramaturgia: ela resgata um modelo de masculinidade em erosão, que vacila entre bravura e desespero quando confrontada com o colapso de suas certezas.

O verdadeiro núcleo simbólico, no entanto, está no encontro com o cachalote branco. Não se trata de um vilão bestial, mas de uma figura quase metafísica — uma presença que rompe o ciclo de domínio entre homem e natureza. Seu aparecimento não representa um clímax no sentido tradicional, mas um colapso. Frente a ele, todos os discursos desmoronam: a racionalidade do caçador, a arrogância do comandante, a lógica da exploração. A baleia não precisa de palavras — ela impõe silêncio. E é nesse vazio que o filme encontra um de seus momentos mais eloquentes. Aqui, a ameaça não é apenas física: ela desestabiliza toda a narrativa do progresso humano.

As críticas que apontam a ausência de momentos “memoráveis” no filme talvez revelem uma expectativa equivocada: a de que uma boa história precisa oferecer ápices previsíveis, moldados à conveniência da catarse. Mas “No Coração do Mar” escolhe outra trilha. Seus maiores méritos estão nos detalhes: na tensão que antecede a decisão de se alimentar dos mortos, no silêncio opressivo que sucede a perda, na lenta erosão da identidade sob o sol inclemente. O filme não oferece consolo. Em vez disso, propõe um mergulho sem promessas de retorno — e exige do espectador a disposição para enfrentar a experiência sem armaduras.

Se há uma certa contenção na direção de Howard, ela não pode ser confundida com apatia criativa. Ao contrário: o que se vê é uma tentativa deliberada de não estetizar a tragédia. O filme evita o espetáculo e escolhe a introspecção. A dor aqui não é romantizada — ela é suja, física, às vezes difícil de assistir. Mesmo os efeitos visuais, tão facilmente utilizados como atalho dramático em outras produções, operam com sobriedade. A baleia não é um efeito, mas um enigma. O mar, mais do que cenário, é uma entidade mutável, indiferente às vontades humanas. E nisso reside uma beleza que passa despercebida por quem exige do cinema apenas entretenimento ou virtuosismo.

Comparar o filme à obra de Melville é uma armadilha que nos impede de enxergar suas próprias virtudes. “Moby Dick” é, por natureza, uma meditação labiríntica sobre obsessão, linguagem e existência. “No Coração do Mar”, por sua vez, é um olhar sobre o limite — o ponto exato em que a humanidade começa a se desfazer. Ambos compartilham uma mesma origem, mas trilham caminhos distintos. Exigir que um contenha o outro é ignorar a especificidade da linguagem do cinema. Howard não tenta reescrever Melville — ele tenta entender como a dor real, enfrentada por homens comuns, pode ser traduzida em imagem e som.

O que permanece não é a grandiosidade das batalhas ou a precisão dos detalhes históricos. O que fica é a dúvida: diante do inominável, é possível narrar sem trair? Essa é a pergunta que ecoa após os créditos, e talvez seja justamente por não oferecer uma resposta que o filme incomode tanto. Em tempos em que se exige clareza, conclusão e impacto imediato, “No Coração do Mar” é uma raridade: uma narrativa que convida ao desconforto, à ambiguidade, ao silêncio. E isso, por si só, já é um gesto de coragem.

Filme: No Coração do Mar
Diretor: Ron Howard
Ano: 2015
Gênero: Ação/Biografia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★