Max e Prime Video: indicado ao Oscar, filme de Clint Eastwood, com Tom Hanks, é obra-prima inestimável Divulgação / Flashlight Films

Max e Prime Video: indicado ao Oscar, filme de Clint Eastwood, com Tom Hanks, é obra-prima inestimável

Algumas histórias se impõem não pela grandiosidade do evento, mas pela concentração de humanidade comprimida em segundos. O pouso de emergência do voo 1549 da US Airways no rio Hudson não foi apenas uma manobra técnica bem-sucedida — foi uma anomalia que escapou a qualquer plano de contingência, um gesto que combinou conhecimento acumulado, instinto afiado e nervos em estado bruto. Transformar esse momento em cinema, no entanto, não é um exercício de reconstrução visual. É, antes de tudo, um mergulho no labirinto onde se confrontam razão, impulso e o peso corrosivo do escrutínio. Em “Sully: O Herói do Rio Hudson”, Clint Eastwood se afasta do espetáculo para investigar a lacuna entre o ato e a interpretação — e é nesse intervalo que o filme encontra sua tensão mais aguda.

A cronologia do acidente já nasceu congelada na memória coletiva: 208 segundos entre a decolagem e o contato com a água. Um intervalo insuficiente para debates, mas suficiente para reescrever o que a aviação civil entendia como protocolo. O que Eastwood propõe, no entanto, é inverter o foco: em vez de concentrar-se no episódio heroico, o longa interroga o que acontece quando um gesto de coragem precisa ser provado sob a lógica implacável de uma comissão técnica. A narrativa se articula em torno de um paradoxo fundamental: o mesmo sistema que treina profissionais para reagir em frações de segundo parece incapaz de aceitar decisões que não possam ser reproduzidas em simulações frias. E é essa desconfiança institucional, mais do que qualquer risco físico, que ameaça Sully.

Ao interpretar o comandante Chesley Sullenberger, Tom Hanks constrói um personagem que não reivindica admiração, mas tenta resistir à erosão da dúvida. Em vez de encarnar o piloto como um ícone elevado à força pelas manchetes, o ator devolve-lhe o peso da condição humana: o trauma, a hesitação e a estranheza de ver sua vida reduzida a estatísticas e manchetes. Cada gesto contido, cada silêncio prolongado, transforma a figura pública num homem que, ao ser celebrado como herói, se viu confrontado por um novo tipo de provação: justificar uma decisão cuja validade estava no fato de ter dado certo. A dúvida, aqui, não é sobre o erro, mas sobre o acerto.

Eastwood constrói essa ambiguidade com precisão quase clínica. Ao diluir a sequência do pouso ao longo da narrativa, em fragmentos distribuídos como lapsos de memória, ele transforma o clímax em um eco persistente, e não em um ápice isolado. Isso permite que o evento seja revisto sob diferentes ângulos — técnicos, emocionais, éticos — e, ao mesmo tempo, impede que o espectador se acomode na certeza da façanha. A reconstituição do acidente não é pirotécnica, mas meticulosa, quase cirúrgica, como se o filme desafiasse o público a compreender que o heroísmo, às vezes, é indistinguível da perícia. E que, para quem viveu o momento, não há espaço para glamour — só para sobrevivência.

Esse olhar contido se estende aos coadjuvantes. Aaron Eckhart, como o co-piloto Jeff Skiles, evita qualquer protagonismo forçado e oferece uma presença que reforça a lógica do coletivo: a de que decisões de cockpit não são fruto de inspiração divina, mas de cumplicidade operacional. Já Laura Linney, no papel da esposa de Sully, enfrenta o desafio de representar alguém que foi, simultaneamente, espectadora e pilar emocional de uma narrativa que a exclui fisicamente. Sua presença reforça uma das camadas mais sutis do filme: a percepção de que o peso do heroísmo é também distribuído por aqueles que precisam sustentar o cotidiano do ícone — mesmo quando as câmeras se voltam para outro lado.

Mas o verdadeiro conflito de “Sully” não está no céu, nem na água. Está nas salas iluminadas artificialmente onde homens e mulheres, guiados por manuais e algoritmos, tentam dissecar uma decisão que foi tudo, menos matemática. A tensão entre a lógica institucional e a intuição humana é o motor da narrativa, e a escolha de Eastwood por dar voz a ambos os lados — ainda que o comitê da NTSB funcione como antagonista formal — é reveladora. Não se trata de demonizar a cautela, mas de questionar a dificuldade das estruturas formais em aceitar que, às vezes, a exceção não viola a regra: apenas escapa ao seu alcance. O filme evita a armadilha do maniqueísmo ao reconhecer que a dúvida também é parte do zelo técnico, e que a tentativa de validar o milagre não anula sua existência.

Adaptado do livro “Dever Maior”, coescrito pelo próprio Sullenberger, o roteiro propõe uma meditação rara no cinema popular: o que acontece quando o extraordinário precisa ser submetido a uma lógica de procedimentos? O que resta de um gesto heroico quando ele precisa caber num relatório? Em vez de enaltecer Sully, o filme o interroga. E ao fazer isso, nos obriga a encarar uma verdade desconfortável: talvez os heróis mais desconcertantes sejam aqueles que não têm respostas absolutas, mas agiram mesmo assim.

“Sully” não deseja ser um retrato épico. Ele prefere ser um estudo — não sobre um feito, mas sobre o desconforto que ele provoca. Não há catarse, mas inquietude. O filme nos entrega um protagonista que, mesmo aclamado, permanece isolado na dúvida; um homem que salvou vidas, mas precisa convencer o mundo de que sua escolha não foi apenas um golpe de sorte. E, talvez, o que mais assuste em “Sully” seja justamente isso: a sugestão de que, mesmo diante de provas incontestáveis, a verdade ainda pode ser levada a julgamento. Não para ser negada — mas para ser desconstruída, testada, medida. Como se o real precisasse sempre pedir licença ao plausível.

Filme: Sully
Diretor: Clint Eastwood
Ano: 2016
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★