Com atuação digna de Oscar de Jake Gyllenhaal, que perdeu 10 quilos para o papel, filmaço está sob demanda no Prime Video Divulgação / Bold Films

Com atuação digna de Oscar de Jake Gyllenhaal, que perdeu 10 quilos para o papel, filmaço está sob demanda no Prime Video

Há filmes que funcionam como espelhos; outros, como lâminas. “O Abutre” escolhe o segundo caminho. Em vez de refletir, corta. Rasga a superfície das aparências e escava o que há por trás da lógica de espetáculo que sustenta a máquina midiática. O diretor e roteirista Dan Gilroy não conduz uma denúncia moralista, mas um estudo cirúrgico sobre a simbiose entre perversão e oportunidade, escancarando a complacência social com o apetite por violência travestida de informação. Los Angeles, nesse contexto, não é cenário: é sintoma. Uma cidade em coma ético, onde as luzes noturnas não iluminam — anestesiam. É nesse ambiente que Louis Bloom, vivido por Jake Gyllenhaal com um realismo que chega a ser desconcertante, aprende que o olhar certo, no momento certo, vale mais do que qualquer diploma, código de conduta ou limite.

Bloom não é um personagem construído a partir de motivações complexas; ele é a própria engrenagem de uma lógica predatória que substituiu empatia por eficiência. Seu olhar inquieto, seus gestos estudados, seu vocabulário moldado por frases de livros de autoajuda e tutoriais de empreendedorismo funcionam como camuflagem para algo muito mais denso: a ausência absoluta de escrúpulos. Não há dilema em suas ações, tampouco hesitação. Sua frieza não é patológica — é estratégica. Ele compreende antes de todos que, numa era regida pelo clamor por imagens impactantes, a tragédia real precisa ser administrada como matéria-prima estética. Gyllenhaal, ao interpretar Bloom, não busca humanidade no personagem — ele recusa essa via com veemência. Sua entrega é a de um ator que compreende que há algo mais assustador do que um vilão: um sujeito funcional, admirado e promovido por fazer exatamente aquilo que deveria causar horror.

A narrativa acompanha esse percurso sem oferecer respiros morais ou zonas de conforto. Gilroy constrói o filme como um pacto incômodo entre espectador e protagonista. A câmera, longe de ser imparcial, gruda em Bloom com a mesma obsessão com que ele persegue seus quadros perfeitos. Somos arrastados com ele pelas madrugadas de uma cidade que dorme com as portas abertas para o colapso. Quando o vemos manipular cenas de crime, invadir propriedades ou mover cadáveres para garantir melhor enquadramento, o choque inicial cede lugar à constatação mais amarga: nada do que ele faz é absurdo dentro da lógica que rege aquele universo — e, por extensão, o nosso. A imprensa retratada ali não é corrupta por desvio de conduta, mas por fidelidade ao próprio sistema que a remunera pela exploração do horror.

O diálogo entre Bloom e Nina, editora interpretada por Rene Russo, funciona como um eixo de tensão que extrapola a dimensão pessoal e alcança o político. Ele a pressiona, ela cede. Ela o usa, ele se impõe. Trata-se de um duelo silencioso entre a sede de audiência e a sede de poder. Cada conversa entre os dois é, ao mesmo tempo, transação e chantagem, flerte e ameaça. É nesse vínculo que o filme atinge sua camada mais desconcertante: a cumplicidade. Não entre os personagens apenas, mas entre todas as partes envolvidas nesse ecossistema — do cinegrafista amador ao consumidor final, passando pelos editores que medem relevância em pontos de audiência. Gilroy desmantela qualquer ilusão de inocência: não há vítimas puras quando a desgraça se transforma em entretenimento de consumo diário.

A escolha estética do filme reforça essa sensação de desconforto persistente. A fotografia desenha um mundo onde o brilho dos postes e sirenes ofusca mais do que ilumina, e cada frame parece meticulosamente calculado para nos manter em estado de alerta. A trilha sonora, quase ausente, acentua o vazio emocional que pulsa sob os acontecimentos. Tudo é seco, pontual, preciso. Nada sobra, mas também nada suaviza. A tensão não cresce em espiral — ela permanece suspensa, como se pairasse sobre cada cena, esperando o momento certo para cair com peso total. Essa contenção narrativa é uma escolha rara e eficaz: o filme se recusa a explodir. Ele prefere comprimir, esmagar aos poucos.

Jake Gyllenhaal entrega uma atuação que desafia o lugar-comum do “intenso”. Sua força não está no volume, mas na constância. Ele atua como um algoritmo: sem emoção, mas com absoluta coerência interna. Cada frase dita por Bloom carrega o timbre de quem aprendeu não a sentir, mas a convencer. Seu discurso é composto por slogans empresariais, como se a ética pudesse ser substituída por métricas. Ele não grita, não implora, não hesita. E é justamente esse controle calculado que assombra. É a ausência de dúvida que o torna assustador. Gyllenhaal não quer que sintamos pena nem ódio — ele nos quer cúmplices.

“O Abutre” não funciona como denúncia porque não propõe mudança. Ele expõe. Revela. E, no gesto de escancarar, joga a responsabilidade sobre quem assiste. Em tempos de manchetes feitas para chocar e vídeos viralizados por cenas de brutalidade, o filme nos obriga a questionar o prazer inquieto que sentimos ao ver o caos capturado por uma lente. Louis Bloom é o pesadelo que não vem do exagero, mas da verossimilhança. Ele não destrói o sistema — ele o personifica. O horror maior não é ele existir, mas o fato de que seu sucesso é não só possível, como previsível.

Resta o close do sorriso. Não um sorriso forçado ou ameaçador, mas aquele típico de alguém que conseguiu exatamente o que queria — e que sabe que terá mais. O sorriso de um predador bem-sucedido num mundo que abandonou os freios morais em nome da relevância. Não há catarse, apenas o incômodo. E se a imagem final não nos choca mais, talvez o espelho tenha deixado de refletir para, enfim, nos revelar.

Filme: O Abutre
Diretor: Dan Gilroy
Ano: 2014
Gênero: Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★