Baseado em livro de José Saramago e com ecos de Dostoiévski, suspense existencial no Prime Video vai fritar seu cérebro Divulgação / A24

Baseado em livro de José Saramago e com ecos de Dostoiévski, suspense existencial no Prime Video vai fritar seu cérebro

Para muitos, a metafísica é o nada absoluto: o homem não veio de lugar algum, vem à luz e ao morrer, não resta-lhe mais nenhuma alternativa além dos vermes. E, por óbvio, há os que dizem que a metafísica, ao contrário, refere-se a um ser sobre todos os seres, uma espécie de matéria impalpável a reger a vida, tanto material como a do espírito. A metafísica, o mais caro legado de Aristóteles (384-322 a.C.), é a ciência de tudo; enquanto cada campo do conhecimento humano dedica-se ao estudo de determinada ciência, a metafísica compreende a ciência como um todo, um saber particular e universal, que paira sobre todas as descobertas do homem sobre a Terra. Contudo, situações como a exposta em “O Homem Duplicado” deixariam até mesmo o Estagirita irresoluto. Um dos diretores mais refinados do cinema hoje, Denis Villeneuve confere apurada estética visual ao romance homônimo do português José Saramago (1922-2010), e o roteirista Javier Gullon aproxima o quanto pode a palavra de Saramago do estilo de Villeneuve, obtendo um efeito de tensão crescente, uma das marcas do vencedor do Nobel de Literatura de 1998.

Adam Bell é um dedicado professor universitário de história de Toronto que parece estar experimentando um tempo de melancolia. A fotografia de Nicolas Bolduc abusa de tons terrosos e de um amarelo manchando a tela em um ou outro momento para sublinhar essa fase de abulia, a que entrega-se gostosamente, elaborando aulas sobre o Império Romano às quais metade da sala não se dá ao trabalho de ir. Conversando com um colega durante o intervalo, ele recebe o conselho de assistir um filme; Adam contra-argumenta que não tem se sente bem no cinema, mas cede às investidas do outro professor, que recomenda-lhe uma locadora.

Aos poucos, Jake Gyllenhaal tira o véu de normalidade de Adam, que assiste ao filme atento o suficiente para notar no fundo de uma cena um carregador de malas com o seu rosto. Anthony Claire tem apenas três filmes no currículo, e o diretor lança semelhantes informações para que tenhamos uma noção da miséria existencial desses dois homens, encarcerados em vidas que há muito são um só tormento sem a mais remota perspectiva de ajuste. Adam vai atrás de Anthony e então o filme passa a um andamento mais imperscrutável.

Adam e Anthony podem ser gêmeos separados no nascimento, mas como explicar o fato de que estão a passos largos rumo ao esquecimento e à ruína, relacionam-se com mulheres loiras e que não os entendem e, o principal, sentem-se mais e mais incompreendidos, até por si mesmos? Como Krzysztof Kieślowski (1941-1996) em “A Dupla Vida de Véronique” (1991), Villeneuve estabelece uma intersecção entre as vidas desses homens, tomando a cautela de pontuar suas diferenças, quase invisíveis, mas que despontam conforme a narrativa avança. Não se consegue depreender, bem ao gosto de Saramago, se Adam e Anthony são de fato dois indivíduos ou duas faces de uma só pessoa. E também, a exemplo do que se lê no livro, apenas um restará vivo para decifrar o grande enigma da história.

Filme: O Homem Duplicado
Diretor: Denis Villeneuve 
Ano: 2013
Gênero: Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.