Filme que consagrou Julianne Moore e levou o Oscar, na Max Divulgação / Killer Films

Filme que consagrou Julianne Moore e levou o Oscar, na Max

No cinema, poucos filmes ousam encarar com franqueza o esvaziamento silencioso da consciência humana. Em “Para Sempre Alice”, essa jornada devastadora ganha contornos de extraordinária sensibilidade graças a uma atuação arrebatadora de Julianne Moore. Na pele da professora de linguística Alice Howland, Moore constrói uma figura que se sustenta mesmo quando tudo ao seu redor — memória, linguagem, identidade — começa a ruir. Ao contrário da tendência comum de deslocar o foco para os familiares diante do colapso mental de uma personagem, o longa escolhe permanecer ao lado de Alice até o fim, fazendo valer o que o título já anuncia: ela ainda é Alice. Essa decisão narrativa radical, potencializada por uma direção consciente da dor e da dignidade de cada etapa da doença, impede que o filme caia nos clichês do melodrama e reafirma a humanidade de quem é frequentemente reduzido à sombra de si mesmo.

Não é coincidência que essa abordagem autêntica tenha sido conduzida por Richard Glatzer, que à época das filmagens enfrentava a esclerose lateral amiotrófica e já havia perdido a capacidade de falar. Ao lado de Wash Westmoreland, seu parceiro de longa data, Glatzer transforma a adaptação do livro de Lisa Genova numa experiência cinematográfica que carrega a urgência de quem compreende, por dentro, os abismos da degeneração neurológica. O resultado é uma narrativa comovente, mas jamais manipuladora, que explora com rara delicadeza as camadas da condição humana quando confrontada com a finitude intelectual. Ver Alice, uma intelectual acostumada à precisão das palavras, tropeçar em frases e esquecer nomes próprios é mais do que um exercício dramático: é uma provocação filosófica sobre o que nos torna quem somos.

Mesmo em meio ao risco de parecer um drama “de prateleira”, montado para colher prêmios, “Para Sempre Alice” evita as armadilhas do sentimentalismo barato. A fotografia de Denis Lenoir e a edição de Nicolas Chaudeurge seguem caminhos convencionais, mas funcionam como moldura para algo muito mais precioso: a construção dos personagens e a honestidade das relações. Alec Baldwin entrega uma das performances mais comedidas e humanas de sua carreira, retratando o marido dividido entre o amor incondicional e o desejo de preservar a própria sanidade. Kristen Stewart, como Lydia, a filha caçula, dá um passo decisivo em direção à maturidade artística, afastando-se definitivamente da sombra de “Crepúsculo” e entregando uma interpretação pungente e serena — tornando-se o pilar afetivo que sustenta a mãe na fase mais desoladora da doença. Já Kate Bosworth e Hunter Parrish, como Anna e Tom, os filhos mais velhos, completam o retrato de uma família atravessada por incertezas, mas não pela indiferença.

No centro dessa trama familiar está a personagem de Moore, cuja trajetória desde os primeiros esquecimentos até o apagamento quase completo da identidade é conduzida com precisão devastadora. Alice é uma mulher de cinquenta anos no auge da vida: uma carreira sólida, um casamento estável, filhos bem encaminhados e a iminência da chegada dos netos. Quando as falhas de memória começam a interferir em suas aulas, o que poderia ser atribuído ao cansaço logo se revela um diagnóstico implacável: Alzheimer de início precoce, herdado do pai. A descoberta abala não só a percepção de futuro, mas também o próprio presente, já que o conhecimento de sua condição transforma tudo ao seu redor em uma contagem regressiva — inclusive para os filhos, que se veem diante da difícil decisão de saber se também carregam o gene da doença. Essa tensão genética, que paira sobre a nova geração, ecoa a tragédia da degeneração como uma herança silenciosa.

O grande mérito de “Para Sempre Alice” é sua recusa em transformar a perda cognitiva em espetáculo. Em vez disso, o filme prefere a aproximação cuidadosa, quase clínica, mas sem jamais abandonar a dimensão poética do declínio. Uma das cenas mais marcantes é o discurso de Alice diante de seus pares acadêmicos — uma tentativa corajosa de articular, pela linguagem, aquilo que já escapa às palavras. Moore, aqui, atinge uma potência raramente vista em sua carreira, justificando cada uma de suas cinco indicações ao Oscar e confirmando que essa é, possivelmente, a interpretação definitiva de sua trajetória. Sua entrega emocional, desprovida de artifícios, encontra eco na trilha sutil de Ilan Eshkeri, que sabe quando tocar e quando silenciar, acompanhando o esvaziamento da consciência com respeito e compaixão.

O que torna “Para Sempre Alice” tão profundamente tocante não é apenas sua abordagem corajosa de um tema difícil, mas sua capacidade de provocar reflexões incômodas e urgentes. Até onde estaríamos dispostos a acompanhar alguém que amamos em um processo irreversível de apagamento? Que parte da identidade humana sobrevive quando a memória falha? E que valor damos à mente numa sociedade que mede o indivíduo por sua produtividade intelectual? O filme não responde a essas perguntas, mas nos obriga a encará-las de frente. É uma obra que desafia o espectador a permanecer no incômodo, sem distrações, reconhecendo em Alice não apenas uma personagem, mas um espelho — frágil, porém inquebrantável.

Filme: Para Sempre Alice
Diretor: Richard Glatzer e Wash Westmoreland
Ano: 2014
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★