Irisz Leiter é uma mulher sem qualidades, do tipo pelo qual ninguém se interessa. Depois de anos fora de Budapeste, Irisz, a mocinha de “Entardecer”, volta a sua cidade, ansiando por rever a casa em que nasceu, mas só encontra a hostilidade de gente que a conhece e a despreza sem cerimônia, um sentimento que a acompanha desde sempre, agora filtrado pela luz difusa da hipocrisia. O filme do húngaro László Nemes é um vaivém de tensão de potências variadas, todas reunidas na figura de uma modista de chapéus de 1913, sozinha, vulnerável, algo narcisista e megalômana, carecendo de emprego e identidade. Nemes e os corroteiristas Clara Royer e Matthieu Taponier recorrem a eventos trágicos da História a fim de tornar ainda mais doído o sofrimento da protagonista, que parece não ter disposição para encarar uma realidade perversa demais. A impressão que se tem é a de que as pessoas são excessivamente complexas e o mundo perigosamente vasto para a ingenuidade de Irisz, que amadurece a seu tempo, ajudada por uma sucessão de golpes.
Irisz é a versão feminina do personagem central de “O Homem sem Qualidades” (1930), o clássico do austríaco Robert Musil (1880-1942). Como Ulrich, ela também é alguém que não consegue ajustar-se à sociedade em que vive. Os dois são desqualificados num mundo cheio de atributos sem indivíduos para vivê-los, ou seja, estariam no lugar certo se não fossem tão honrados para reconhecerem-se inúteis num mundo em que objetividade, praticidade, utilidade são os fundamentos para se ter uma vida plena. No caso de Irisz, Nemes a coloca batendo à porta de uma loja de artigos para senhoras; ela entra e é cercada por vendedoras que oferecem-lhe chapéus de feitios variados, porém ela fora até lá pela vaga de estilista, provocando um enfado quase colérico em Szeréna, a funcionária vivida por Judit Pechácek. A candidata consegue uma entrevista com Oszkár Brill, o dono da butique, e o diálogo que Irisz e o personagem de Vlad Ivanov estabelecem justifica em parte a apreensão da moça, que não ganha o emprego e sai pior do quando entrou, aconselhada a voltar para Trieste, no nordeste da Itália. Realmente, era o que ela deveria ter feito.
Aliando instinto e técnica, Jakab Juli acha os meandros de Irisz Leiter, uma mulher que poderia tocar sua vida como todo mundo, contudo prefere lamuriar-se, mendigando o afeto de quem não a merece e fazendo um esforço hercúleo para ser aquilo que não pode. Por falar em aliado, o quê impressionista da fotografia de Mátyás Erdély leva o público a imaginar-se na Europa pré-Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um tempo de inocência quase pueril que não demoraria a se perder, levando ao caos perene a que Irisz era tão apegada.
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