A série mais assistida da história da Netflix em tempo recorde: 97 milhões de vezes em apenas 25 dias Divulgação / Netflix

A série mais assistida da história da Netflix em tempo recorde: 97 milhões de vezes em apenas 25 dias

Yorkshire acorda como tantas vezes antes: com névoa leve nas janelas e uma rotina que ainda acredita na previsibilidade das manhãs. Mas é justamente nessa tranquilidade enganosa que a minissérie “Adolescência”, finca sua lâmina mais afiada. Em poucos minutos, uma viatura policial intercepta a normalidade — um agente ri com a mensagem de voz do filho e, em seguida, participa de uma invasão armada à casa de um garoto de treze anos. Esse paradoxo inicial — ternura paternal e brutalidade institucional — antecipa a tensão contínua da série: o colapso dos vínculos, a falência das estruturas protetoras e a fragilidade de qualquer certeza sobre o que significa ser pai, filho ou cidadão. Não se trata de suspense criminal; trata-se da erosão lenta e irreversível da intimidade familiar, captada por uma câmera que se recusa a piscar.

Filmada em plano-sequência com uma precisão quase claustrofóbica, a narrativa abandona a lógica investigativa tradicional para submergir nos destroços emocionais causados por um crime cujos contornos permanecem deliberadamente imprecisos. O que interessa não é o veredito, mas a reação à suspeita: os pais que não reconhecem o filho que criaram, a escola que funciona como incubadora de silêncios cúmplices e as instituições judiciais que parecem mais empenhadas em salvar aparências do que em decifrar complexidades. Em um país que se orgulha de seu sistema legal meticuloso, o espectador acompanha a impotência de adultos desnorteados diante de adolescentes cujas bússolas morais foram corrompidas por códigos invisíveis, redes sociais anárquicas e ecos de discursos misóginos cada vez mais naturalizados.

Jamie Miller não é um enigma a ser decifrado, mas um espelho trincado que recusa interpretações unívocas. O roteiro, ao evitar didatismos, permite que o personagem oscile entre o abandono emocional e a brutalidade potencial, entre a fragilidade afetiva e a sedução de ideologias tóxicas que prometem relevância a quem se sente invisível. A série ousa mostrar que a violência não brota do nada, tampouco obedece a uma lógica singular: ela se forma na solidão de quartos escuros, nas lacunas não percebidas por pais amorosos mas distraídos, na ausência de referências emocionais que não sejam algoritmos. Jamie é inteligente, mas não entende sua dor; é carente, mas hostiliza quem tenta tocá-lo. Sua instabilidade, registrada em closes sem piedade, é também o retrato de uma adolescência domesticada pela insegurança e treinada para reagir com fúria ao menor gesto de rejeição.

Ao se recusar a acompanhar o processo judicial e ao marginalizar deliberadamente a figura da vítima, “Adolescência” concentra sua força naquilo que geralmente permanece à margem: o luto antecipado da família do suspeito, a vergonha cotidiana infiltrada nos gestos mais banais, os vínculos familiares expostos à deterioração pública. Quando Eddie, o pai — interpretado com precisão avassaladora por Stephen Graham — tem sua van vandalizada ou evita o olhar do balconista que reconhece seu sobrenome, não se trata de um mero registro de preconceito. É a encenação visceral de como o crime se infiltra nas relações civis, contaminando até mesmo a linguagem mais trivial. A dor não vem apenas da acusação, mas da impossibilidade de continuar vivendo como antes, mesmo que o julgamento ainda não tenha começado. É o peso do “talvez”, do “e se”, que corrói os laços e silencia os afetos.

Em um dos momentos mais impactantes da minissérie, o detetive Bascombe — ele próprio um pai incapaz de estabelecer conexão com seu filho — precisa ouvir do garoto aquilo que nenhum algoritmo policial é capaz de oferecer: uma tradução emocional dos códigos digitais que possivelmente anteciparam o crime. Esse embate entre autoridade e vulnerabilidade sintetiza o dilema que atravessa toda a série: não há como punir sem compreender, mas compreender implica descer ao terreno escorregadio da ambivalência, onde vítimas e algozes às vezes se confundem. É aí que a série desafia qualquer tentativa de conforto narrativo. A comoção não nasce de revelações, mas da exposição à complexidade: adultos perdidos em seus próprios arrependimentos, jovens deformados por um mundo que exige performance constante e nega espaço à hesitação.

“Adolescência” não busca respostas nem redenções. Sua potência está em denunciar o colapso silencioso das estruturas afetivas e sociais que fingimos serem sólidas. O que resta é uma sucessão de rostos exaustos, diálogos que cortam como vidro e uma sensação persistente de que aquilo que se quebrou não pode ser colado — não por tribunais, não por terapeutas, talvez nem mesmo pelo tempo. Em tempos que insistem em respostas simples para dilemas complexos, a série oferece o oposto: uma travessia incômoda, honesta e necessária pela zona de sombra entre o amor e a decepção, entre a culpa e a ignorância, entre a infância perdida e a responsabilidade que ninguém quer carregar. O impacto não está em nos convencer de algo, mas em nos fazer perguntar, com o estômago apertado: até onde conhecemos quem criamos? E o que fazemos quando a resposta não consola, mas condena?


Série: Adolescência
Criação: Stephen Graham e Jack Thorne
Direção: Philip Barantini
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Crime 
Nota: 9/10