Em tempos em que o entretenimento se debate entre a ambição estética e o vazio temático, “Núcleo – Missão ao Centro da Terra” opta por um caminho radicalmente distinto: entrega-se ao absurdo com tal convicção que o delírio se torna seu alicerce mais sólido. O filme, dirigido por Jon Amiel, não tenta enganar o espectador com pretensões científicas ou alegorias disfarçadas de profundidade — ele parte de uma premissa inverossímil, escala-a sem pudor e convida o público a acompanhá-lo, sem freios, até o centro da Terra. É, no mínimo, um pacto honesto: ao invés de mascarar sua tolice com uma embalagem séria, ele exibe sua insensatez como troféu. E talvez aí esteja sua força mais inesperada.
A narrativa, que começa com uma falha geomagnética inexplicável, rapidamente escorrega da ficção científica para o terreno do fantástico desvairado. Quando se descobre que o núcleo do planeta deixou de girar, a resposta governamental é imediata: construir uma nave perfuradora e detonar ogivas nucleares no centro da Terra, para que tudo volte ao normal. A ideia, mais próxima de um roteiro de desenho animado do que de um thriller apocalíptico, estabelece o tom da jornada: é menos sobre lógica e mais sobre a suspensão voluntária de qualquer ceticismo. A bordo da “Virgil”, um submarino concebido em semanas e à prova de magma, um grupo de especialistas improváveis atravessa camadas do planeta em uma missão que soa como paródia, mas se apresenta com toda a solenidade de um épico cataclísmico.
Ainda que o roteiro seja um festival de atalhos narrativos, lacunas técnicas e situações que desafiam qualquer relação com a realidade física, o elenco se empenha em atribuir humanidade ao que poderia ser apenas um exercício de exagero. Aaron Eckhart, geralmente associado a personagens dúbios, interpreta um geofísico com convicção sincera. Hilary Swank, já premiada e respeitada à época, empresta à astronauta Beck uma presença sólida, que equilibra o caos ao redor. Stanley Tucci brilha ao compor um cientista narcisista e cínico, cuja arrogância encontra um contraponto silencioso no personagem de Delroy Lindo — talvez o único com densidade emocional genuína, carregando a frustração de um legado usurpado. E há ainda DJ Qualls, no papel do hacker solitário, cuja função seria meramente expositiva, mas que consegue inserir uma fragilidade tocante ao arquétipo repetido.
Esse empenho coletivo em dar seriedade a um enredo escancaradamente absurdo revela o que talvez seja o segredo do filme: “Núcleo” não falha por tentar parecer realista; ele triunfa, paradoxalmente, ao fingir que não percebe o quanto é ridículo. A montagem, em vez de suavizar os excessos, os amplifica: cortes bruscos entre cenas desconexas, diálogos que soam como improvisações sobre uma pauta perdida e uma sucessão de reviravoltas que atropela qualquer senso de ritmo ou progressão dramática. Ainda assim, há energia ali. O filme nunca se permite o tédio — algo raro, mesmo entre produções mais prestigiadas. Quando pássaros enlouquecidos despencam do céu, quando o ouro líquido do manto terrestre ameaça derreter a nave, ou quando diamantes gigantes bloqueiam o caminho dos heróis, o espectador, ao invés de rir da tentativa, se vê rindo com ela.
Do ponto de vista técnico, os efeitos especiais variam entre o aceitável e o involuntariamente cômico. Geodos do tamanho de estádios e paisagens subterrâneas iluminadas por magma fluorescente compõem um espetáculo visual que parece oriundo da mente de um adolescente hiperativo com orçamento de blockbuster. E, no entanto, essa estética quase kitsch funciona como reforço da proposta: não estamos diante de uma projeção do futuro plausível, mas de um teatro de exageros embalado como evento global. O que falta em credibilidade sobra em entusiasmo. Há algo quase comovente na forma como a produção se recusa a admitir limites.
É evidente que o roteiro sofreu interferências e mudanças apressadas, e a costura final revela um produto em estado bruto. Mas até isso contribui para a autenticidade involuntária do longa. Ele não tenta ser uma reflexão sobre a condição humana nem uma crítica velada à relação da humanidade com o planeta. Seu motor é mais simples: a crença de que uma equipe improvável pode, sim, salvar o mundo — não importa quão implausível seja o método. E nesse otimismo quase infantil reside sua estranha beleza.
Há, em filmes como “Núcleo”, uma espécie de liberdade extinta nas produções contemporâneas, obcecadas por coesão temática e lógica interna. Aqui, o que se vê é um universo onde a ciência é um palco para o heroísmo, o impossível é rotina, e cada catástrofe é apenas o prelúdio de uma reviravolta ainda maior. Se há algo a se aprender com essa experiência, é que o valor de um filme não reside apenas em sua coerência ou sofisticação técnica, mas na relação que estabelece com quem o assiste. E “Núcleo”, com todos os seus equívocos, convida à cumplicidade: ele não pede que se acredite em sua história, apenas que se aceite a brincadeira.
Talvez, no fundo, seja por isso que tantos espectadores ainda guardam alguma afeição por ele. Porque em um mundo cada vez mais cínico, onde até a fantasia exige embasamento científico, há algo profundamente libertador em um filme que ousa ser apenas um espetáculo de exageros — e que, ao fazê-lo sem vergonha, conquista exatamente aquilo que os títulos mais sérios muitas vezes perdem: o prazer sincero de assistir a algo imprevisível, insensato e, curiosamente, inesquecível.
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