Favorito de 9 em cada 10 cinéfilos, filme de ação que convence até quem não gosta do gênero está na Netflix Divulgação / Summit Entertainment

Favorito de 9 em cada 10 cinéfilos, filme de ação que convence até quem não gosta do gênero está na Netflix

Há um tipo específico de silêncio que antecede uma tempestade — não o silêncio vazio, mas aquele que pulsa. “De Volta ao Jogo” opera exatamente nesse intervalo: não é apenas o retorno de um homem ao seu passado violento, mas o colapso inevitável de tudo que ele tentou enterrar. John Wick não entra em cena como o salvador de ninguém. Ele não quer redenção, não deseja heroísmo, tampouco se permite nostalgia. O que vemos é um homem fragmentado que, ao perder seu último vínculo afetivo — um cachorro deixado por sua esposa antes de morrer —, colapsa de volta ao abismo que havia tentado evitar. Esse não é um artifício melodramático, mas um gesto narrativo preciso: não se trata do cão em si, mas da brutalidade de uma ruptura emocional definitiva.

O ponto de partida, embora aparentemente simples, é engenhoso. Ao escolher um elemento discreto e intimamente simbólico como gatilho do caos, o roteiro escapa das fórmulas batidas e injeta carga emocional onde muitos esperariam apenas sangue. É justamente aí que “De Volta ao Jogo” se diferencia da paisagem desidratada do cinema de ação contemporâneo — não por reinventar o gênero, mas por recodificá-lo com clareza formal, rigor estético e um inesperado senso de contenção dramática.

Sob a direção de Chad Stahelski e David Leitch, o que poderia ser apenas mais uma sequência de vingança genérica se transforma em uma coreografia meticulosamente calculada, onde cada tiro, cada golpe, cada silêncio carrega função narrativa. A violência, por mais estilizada que seja, não assume o protagonismo gratuito que se tornou norma no gênero: ela emana de uma lógica interna, de uma dor que não precisa ser verbalizada para ser compreendida. A célebre sequência da boate, por exemplo, transcende o espetáculo visual e se torna um estudo de composição cênica. A câmera flutua sem pressa, a luz pulsa em consonância com a música, e John Wick avança como uma sombra — não há pressa, não há exagero. O caos, aqui, tem elegância.

Keanu Reeves, longe de depender de frases de efeito ou de construções dramáticas óbvias, sustenta seu personagem com uma economia expressiva rara. Sua atuação se ancora no corpo: postura, olhar, respiração. Há uma dor antiga que reverbera em cada gesto, e essa contenção deliberada é o que torna sua performance tão eficiente. Não há espaço para sentimentalismo barato. John Wick mata porque é o que sabe fazer — e porque tiraram dele o único motivo que o impedia de continuar fazendo isso. Essa frieza calculada é o que confere veracidade ao personagem. Não se trata de empatia, mas de coerência.

O universo delineado pelo filme também merece atenção especial. Em vez de se explicar, ele se insinua. O submundo onde assassinos seguem códigos próprios, frequentam hotéis com regras sagradas e trocam moedas douradas como forma de reconhecimento mudo parece emergir de uma lógica que mistura quadrinhos noir com contos de honra samurai. O Hotel Continental é mais do que um cenário: funciona como metáfora de uma ordem paralela que se autorregula, uma civilização secreta que impõe limites até à barbárie. Essa abordagem confere à narrativa uma camada mitológica, sem jamais perder o senso de realismo estilizado que a sustenta.

Não se trata de criar um universo fantástico — mas de sugerir que há outras regras em operação, tão coerentes internamente que dispensam didatismo. Essa confiança na inteligência do público permite, inclusive, que o humor surja como produto orgânico do absurdo intrínseco àquele mundo. Não há piadas forçadas, apenas situações que, por sua própria lógica, beiram o cômico sem dissolver a tensão.

Mesmo os personagens secundários, que poderiam ser facilmente esquecíveis, são esculpidos com precisão. Willem Dafoe, Ian McShane e John Leguizamo não estão ali para preencher lacunas, mas para reforçar a sensação de uma rede pré-existente, uma teia de relações e pactos que antecede a história mostrada. Suas presenças não são decorativas, mas estruturais. Cada um parece carregar um histórico com John que não precisa ser verbalizado — e isso é mérito de um roteiro que aposta na sugestão em vez da exposição.

A montagem contribui para essa coesão ao jamais permitir que a ação se torne um fim em si mesma. Cada movimento é consequência — emocional, ética ou física. Quando Wick mata, não é para exibir perícia; é porque não há outra alternativa. E essa inevitabilidade, essa recusa em transformar o protagonista em um super-humano impermeável, é o que dá solidez ao arco dramático. A violência não é gratuita — é inevitável.

Alguns detalhes técnicos, como leves inconsistências na mixagem de som em diálogos mais íntimos, poderiam ter sido ajustados. Mas essas falhas pontuais não comprometem o impacto geral. O filme não aspira perfeição. Sua força está na consistência: tudo o que importa está onde deveria estar, e o que escapa da medida é tão mínimo que se dissolve no conjunto.

Mais do que um bom exemplar do gênero, “De Volta ao Jogo” é um lembrete de que o cinema de ação não precisa ser raso para ser eficaz. Ao apostar em uma estética limpa, uma mitologia sugerida e uma atuação contida, o filme cria uma experiência densa, coesa e instigante. E ainda que o universo deixado ao final convide a expansões — que de fato viriam depois —, o primeiro capítulo se sustenta por si só, com começo, meio e um fim que ecoa como cicatriz. Não há redenção possível, tampouco catarse. Só há o caminho de volta — percorrido com precisão, estilo e melancolia.

Filme: John Wick — De Volta ao Jogo
Diretor: Chad Stahelski
Ano: 2013
Gênero: Ação/Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★