Corra para ver a aventura incrível com Hugh Grant e Chris Pine que está prestes a deixar a Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Corra para ver a aventura incrível com Hugh Grant e Chris Pine que está prestes a deixar a Netflix

Durante décadas, “Dungeons & Dragons” foi visto como um território intransponível para o cinema. Entre estatísticas, criaturas mágicas e tabelas de feitiços, o universo nascido nas mesas de RPG resistia a qualquer tentativa de adaptação que não soasse artificial ou simplista. O fracasso retumbante da primeira tentativa, no ano 2000, parecia ter selado a impossibilidade da empreitada. E, no entanto, contra todas as previsões, “Honra entre Rebeldes” rompe esse estigma com uma estratégia que parece, à primeira vista, improvável: rir de si mesmo sem jamais se desrespeitar.

O que distingue essa produção não é apenas sua habilidade técnica ou seu orçamento visível, mas a escolha radical de abraçar o caos criativo que define o jogo original. Em vez de tentar domesticar o universo de “D&D”, moldando-o às expectativas narrativas tradicionais, o filme opta por recriar, com irreverência e inteligência, a sensação de estar sentado à mesa com amigos, onde a lógica cede espaço à improvisação, e onde o fracasso pode ser mais divertido que o sucesso. Nesse sentido, ele não é uma adaptação no sentido habitual — é quase um espelhamento da experiência lúdica, traduzida em linguagem cinematográfica.

O roteiro, consciente de sua origem coletiva, propõe uma narrativa que oscila entre o épico e o cômico, e o faz sem tropeçar em pastiches ou exageros autoconscientes. Há, por trás do humor, uma estrutura sólida que compreende o valor dramático dos personagens e reconhece que a leveza não exclui a profundidade. O equilíbrio é notável: o enredo avança com fluidez, os diálogos são ágeis sem cair na esperteza vazia, e os momentos de ação coexistem com passagens de humanidade rara em filmes do gênero. 

O elenco é mobilizado com precisão estratégica. Michelle Rodriguez impõe uma fisicalidade brutal sem sacrificar a vulnerabilidade emocional de sua personagem. Já Regé-Jean Page constrói um paladino tão fiel aos seus princípios que se torna cômico por excesso de integridade – e é essa rigidez caricatural que o torna fascinante. O mesmo cuidado é perceptível na construção dos protagonistas Edgin e Simon, figuras que rejeitam o arquétipo do herói pronto. Suas trajetórias são marcadas por falhas, hesitações e escolhas mal calculadas, e é exatamente isso que os torna ressonantes: são personagens que erram de forma reconhecível, que resistem à simplificação narrativa e evoluem de maneira orgânica.

Mais do que um produto de entretenimento, “Honra entre Rebeldes” funciona como uma decodificação do próprio espírito de “Dungeons & Dragons”. A natureza do jogo — pautada por decisões improvisadas, rolagens imprevisíveis de dados e interações muitas vezes absurdas — encontra eco na forma como o filme se organiza. Há uma liberdade criativa visível na estrutura da trama, que rejeita a previsibilidade e acolhe o inesperado como motor da narrativa. Sequências como a perseguição protagonizada por uma druida metamorfa ou o confronto final, que articula magia e estratégia com engenhosidade, são exemplos dessa ousadia formal. O ritmo é mantido com notável domínio, oscilando entre o grandioso e o íntimo sem jamais perder o eixo.

A força do filme está, também, na recusa em se submeter às exigências mais fáceis do mercado atual de adaptações. Não há reverência cega ao cânone, nem concessões gratuitas ao fan service. O que se vê é um uso lúcido e criativo do universo do jogo, que serve como ponto de partida para algo autêntico. A familiaridade com o material de origem é uma vantagem, mas não um pré-requisito: quem nunca rolou um dado de vinte lados será acolhido com a mesma generosidade de quem conhece os pormenores de Faerûn. A narrativa é acessível sem ser superficial, e esse equilíbrio é talvez sua maior façanha.

Há, contudo, uma resistência perceptível por parte de segmentos da crítica e do público em reconhecer o mérito da produção. O preconceito com franquias adaptadas de outras mídias ainda é forte, como se originalidade e licença intelectual fossem mutuamente excludentes. Mas “Honra entre Rebeldes” refuta essa premissa com consistência. Não apenas constrói um filme coeso e visualmente sofisticado, como faz isso com leveza, sagacidade e um entendimento profundo do que torna uma história envolvente — independentemente de sua origem.

Ao invés de repetir fórmulas ou se perder em excessos autoconscientes, o filme propõe algo mais raro: uma aventura que diverte sem subestimar, que emociona sem manipular, e que compreende que humor e fantasia não são forças opostas. A comicidade aqui não serve para esvaziar o gênero, mas para torná-lo mais humano, mais próximo, mais surpreendente. É justamente na intersecção entre a brincadeira e a sinceridade que “Honra entre Rebeldes” encontra sua singularidade.

Seria um erro enquadrá-lo apenas como um acerto inesperado dentro de uma franquia desacreditada. O que está em jogo é mais amplo: a capacidade de um filme de gênero resgatar o prazer narrativo em tempos de saturação e cinismo. Quando a aventura se tornou uma fórmula exaurida, “Honra entre Rebeldes” resgata a vitalidade do risco, da falha, do improviso. E é por isso que, contra todas as apostas, ele não apenas funciona  — ele se impõe. Sem pompa, sem reverência, sem alarde — apenas com engenho, afeto e liberdade.

Filme: Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes
Diretor: John Francis Daley e Jonathan Goldstein
Ano: 2023
Gênero: Ação/Aventura/Comédia/Fantasia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★