Entre os temas explorados por Tolstói em “A Morte de Ivan Ilitch”, para além do que sugere o título, o escritor se concentra na solidão. Morre-se sozinho! Ivan, um juiz que possui um câncer que o acomete de maneira fulminante, levando-o à total debilidade em um curto intervalo de tempo, tem a vida ceifada pela doença ainda jovem e com uma existência cheia de planos por realizar. Essa é a essência da novela: como seria a vida se toda ela fosse comprimida em algumas semanas ou, no máximo, meses?
Tolstói, um idealista, um provocador e um entendido das circunstâncias-limite entre comportamento e crença, explora o tema da morte usando, assim como Kafka em “A Metamorfose”, o inusitado, o inesperado, para condensar a experiência da morte e a memória da vida em um tempo curto, avaliando como o ser humano, condenado à morte desde o nascimento, reflete sobre o seu inevitável desaparecimento. Tolstói cria um ambiente sombrio e alimenta a expectativa, intensificando a cena moribunda e a autocomiseração da personagem principal, posicionando-a num mundo íntimo e complexo, completamente só.
“A Morte de Ivan Ilitch” narra os últimos dias da personagem do título, detalhando o sofrimento causado por uma dor imensuravelmente terrível no rim, após um acidente que parece ser uma espécie de desencadeador da doença. Ivan, que tem uma vida social imposta, é casado e pai de dois filhos. Não realizou grandes feitos e não tem certeza se o caminho (carreira) que escolheu foi o melhor, o correto. Diante da doença, tudo parece irrelevante. A escolha feita não pode ser desfeita, e qualquer nova decisão é impossível, pois, sem a possibilidade de vida, o futuro não existirá.
Kafka faz algo parecido em seu livro obscuro e genial “A Metamorfose”. Conhecemos o caixeiro-viajante Gregor Samsa transformado em um gigantesco inseto, e essa é a única imagem que fica gravada, apesar de o narrador contar detalhes de sua vida pregressa: sua profissão, sua atuação nas forças armadas, sua relação com os pais e a irmã. O que não importa muito, pois Gregor está preso em um novo corpo que não permite uma vida normal, a realização de sonhos ou uma ação que faça a diferença, que o transforme em um modificador da realidade e inspire gerações, como é o ideal altruísta dos jovens. O mesmo acontece com Ivan Ilitch, que perde a perspectiva de uma vida normal por causa da doença que o diminui, humilha e degenera gradativamente.
O ponto é importante nas duas narrativas, e cito “A Metamorfose” para avançar ainda mais no conceito tolstoiano, pois a novela de Kafka eleva o sufoco e a necessidade para um nível absolutamente alto. As duas personagens não têm poder sobre seus corpos, não conseguem determinar o rumo de suas vidas. São criaturas proibidas de viver normalmente, mesmo possuindo o desejo de fazê-lo completamente. Tolstói, perspicaz, mergulha nessa cilada um ser capaz de refletir sobre sua condição, situação e participação no mundo. Um ser que, à medida que sente a presença da morte, entende em qual momento de sua vida perdeu a pista para o caminho certo e onde desejaria estar, caso tudo pudesse ser corrigido, a doença eliminada e o corpo restabelecido. Como Gregor, ainda há uma esperança enquanto um resquício de humanidade existir. Mas, nos dois casos, os homens morreram no instante da transformação em inseto e na queda que arrebentou o tumor maldito que cresceu escandalosamente.
Ivan Ilitch diz, consternado: “Lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse”. Ivan morre porque não pode voltar a ser criança. Ivan morre porque a existência, segundo Tolstói, carece de altruísmo e potência. A vida não é para o trabalhador de segunda a sexta, fichado, com carteira assinada. A vida não é para o advogado advogar, o juiz decidir entre A ou B. A vida é, de alguma maneira, para superar o medo da morte e entender o infindável mistério de existir, sabendo-se perecível, temporário e frágil.
Kafka eleva isso à décima potência. Gregor está confinado em um corpo que não é o seu, que não funciona corretamente e não permite que ele participe da vida em sociedade. Ele não pode mudar. Não há nada que possa fazer. Sente que tudo estaria certo se o absurdo pudesse ser desfeito. Mas acompanhamos sua desventura sabendo que tudo descamba para a desgraça. É inevitável que Gregor, assim como Ivan, perca completamente a dignidade diante da luta pelo controle de um corpo que não pode obedecer ao mínimo comando. Tudo que estava certo é desmanchado instantaneamente por causa do infortúnio, do acidente, do acaso. E, como diria Ivan, “para quê?”
Tolstói quer responder, e para isso usa uma sensibilidade assustadora e constrói um dos textos literários mais diretos, sinceros e comoventes da história.
Ivan Ilitch morre porque não pode mais ser criança. Deixou seu passado luminoso por um presente no qual não acredita. Gregor Samsa metamorfoseia porque não pode ser o que deseja ser. Transforma-se numa perspectiva real e social da vida. Não podemos ser o que queremos, pois as adversidades determinam a vida, e a maior parte dos eventos não podemos controlar. Na literatura, estar doente ou virar um inseto são imposições naturais ou antinaturais que representam uma hipérbole da vida, mas que impedem que o desejo sobressaia. Não podemos imaginar Gregor como homem. É impossível, assim como não podemos imaginar Ivan criança.
Ivan e Gregor são abandonados pela família à própria sorte. Sentem-se sozinhos como um inumano ou um monstro. A doença tira a humanidade de Ivan e o transforma em algo que ele não era. Resta o íntimo sombrio e solitário da dor contundente como força motriz para o advento da realidade máxima: o confronto com a última ação. Morrer, na visão de Tolstói, é um ato de heroísmo. Vencer o medo é a única alternativa. Afastado de todos, Ivan, nessa hipérbole que simula uma fatalidade última, intensificada pelo evento arrasador e prematuro que todos teremos que enfrentar, precisa resolver consigo mesmo sua postura diante do encontro. E ele o faz. Tolstói, sem um estilo poético definido, mas com uma crueza assustadora, dá redenção ao seu herói.
Kafka é mais sinistro e cruel. Mas Gregor é consequência da tese começada com Ivan. Ou seja, no final, estamos sós e definitivamente abraçados ao desconhecido inevitável. Ambos os autores, descrentes, resumiram a felicidade do outro na eliminação do ser que não se enquadra. Mas, aos olhos de Tolstói, Ivan poderia ser necessário.