Nenhuma manifestação artística é superior à outra, e o cinema é decerto a que melhor congrega formatos diversos, dando à luz algo novo, que busca dar realce à magia tão particular da imaginação, fundamental na leitura, e a beleza feérica que é a essência mesma dos filmes. Distanciar-se de um livro é o passo inicial — e quiçá o mais importante — para que se teça a crítica de um filme inspirado nele. Não conheço a literatura de Cormac McCarthy (1933-2023) o suficiente, mas “A Estrada” é um belo trabalho de composição estética, que leitores e não leitores de McCarthy identificam logo. John Hillcoat mantém o espírito saborosamente niilista do romance distópico de mesmo título publicado em 2006, traduzindo a prosa do escritor nas imagens avassaladoras que atestam sua desilusão no gênero humano. Como no texto original, o roteirista Joe Penhall evoca o espectro do caos e da destruição pós-11 de Setembro, simbolizado por um pai viúvo e seu filho errando sem rumo pela América, fugindo de canibais e de quando em quando padecendo de memórias felizes de um tempo morto.
Da mesma forma que McCarthy, Hillcoat não explica o que levou ao apocalipse. Os sobreviventes estocaram armas e munição, porém agora não resta nada além de escombros, armazéns cobertos de fuligem com uma ou outra lata de mantimento e cadáveres putrefatos por ruas desertas. Flashbacks mostram um casal numa casa confortável, esperando pelo primeiro filho, e sem prévio aviso, o diretor corta para a cena em que O Homem e O Garoto empurram um carrinho da Pensilvânia em direção ao oeste, talvez numa vontade inconsciente de encontrar algum novo Eldorado. Quase tudo em “A Estrada” é mera sugestão, mas se pode dizer com acerto que o instinto protetor do Homem vem de antes da catástrofe, e Viggo Mortensen tem momentos luminosos na pele de um indivíduo fustigado pelo efeito de escolhas nas quais não teve qualquer participação, uma das muitas ocasiões em que McCarthy deixou claro sua descrença com a política, sendo definido ora como um liberal ferrenho, ora como um conservador implacável. Com a figura do Garoto, diversamente, dava margem a um lirismo diabólico, de quem sabe que nada jamais há de mudar e se segura para não submergir na lagoa gris e morna do tédio e da monotonia.
Na pele do Garoto, Kodi Smit-McPhee compõe uma parceria equilibrada com Mortensen, os dois oscilando do pânico pela morte do outro a uma bravura irracional, isto é, O Garoto não é nenhum ingênuo. A participação afetiva de Charlize Theron como A Esposa e Mãe confere algum calor a uma trama de pessimismo militante, materializado nos planos abertos sobre paisagens cor de chumbo, uma grande sacada da fotografia de Javier Aguirresarobe. Hillcoat está finalizando “Meridiano de Sangue”, outra adaptação de um livro de McCarthy, e ao chegar ao desfecho de “A Estrada” só tenho uma certeza: preciso conhecê-lo melhor — o que, por óbvio, vai me fazer desejar assistir a mais filmes como esse.
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