À primeira vista, “Dumplin’” poderia ser confundido com uma comédia adolescente típica, embalada por baladas country de Dolly Parton e temperada com doses moderadas de autoconfiança. No entanto, por trás da maquiagem leve e da trilha sonora nostálgica, o filme camufla tensões mais complexas: o luto silenciado, a insatisfação herdada entre gerações e a frágil construção da própria imagem diante de um espelho que nunca reflete por inteiro. A diretora Anne Fletcher, embora conhecida por comédias convencionais, encena aqui uma história que tenta erguer sua voz dentro de um universo onde padrões, literalmente, valem coroas.
Baseado no livro de Julie Murphy, o roteiro de Kristin Hahn aposta na delicada operação de transformar um concurso de beleza em campo simbólico de confronto e ressignificação. No centro desse movimento está Willowdean Dickson, jovem que carrega no corpo uma crítica involuntária aos códigos estéticos que a cercam e na alma um conflito ainda mais difícil de ser articulado: a ausência emocional da mãe, vivida por uma Jennifer Aniston contida, quase calculada. Não se trata apenas de um embate entre juventude e vaidade materna. Trata-se da busca silenciosa por um afeto que nunca foi dado em sua forma plena — e que agora, para ser conquistado, precisa ser disputado no palco onde a mãe um dia brilhou.
O cenário — uma pequena cidade texana embebida de referências à figura quase mítica de Dolly Parton — é tanto paisagem quanto alegoria. Dolly, onipresente nas letras e nos sentimentos, funciona menos como trilha sonora e mais como espírito tutelar, símbolo de uma feminilidade resistente que se recusa a se curvar aos códigos tradicionais. No entanto, o filme falha em explorar o potencial de subversão que esse ícone poderia carregar. Em vez de servir como fagulha para um incêndio libertador, a presença de Dolly vai se esvaziando, tornada ornamento, reduzida a um afeto previsível.
O grande trunfo de “Dumplin’”, ainda assim, não está exatamente em Willowdean, mas nas figuras periféricas que orbitam sua jornada. Millie, por exemplo, representa uma doçura não domesticada pela vergonha; Hannah, um contraste punk à estética do concurso. É nesse núcleo secundário que o filme alcança lampejos de autenticidade. São essas meninas, que riem, tropeçam e seguem em frente, que mais se aproximam daquilo que o longa pretende defender: a existência de múltiplas formas de beleza e de coragem.
Contudo, o discurso que o filme ensaia — o de uma insurgência contra os rituais do julgamento público — se revela mais performático do que visceral. A entrada de Willowdean no Miss Teen Bluebonnet é anunciada como um gesto de transgressão, mas logo se vê absorvida pela lógica do espetáculo que ela mesma pretendia tensionar. O que deveria soar como ruptura termina como adaptação, como se a única forma possível de vencer o jogo fosse aceitar suas regras silenciosamente.
As relações dramáticas, por sua vez, carecem de conflito real. O afastamento entre Willowdean e a amiga Ellen é resolvido sem atrito; o romance com Bo, cuja sensibilidade poderia ter sido explorada como contraponto à insegurança da protagonista, escorrega na superficialidade. O roteiro evita o desconforto, optando por uma trajetória emocional polida, sem arestas — o que, paradoxalmente, esvazia a força do que se propõe a desafiar.
Jennifer Aniston, ainda que tecnicamente precisa, oferece uma atuação que jamais ultrapassa os contornos seguros de sua personagem. A ex-rainha da beleza Rosie poderia encarnar a rigidez implacável de um ideal ultrapassado, mas acaba reduzida a um esboço de antagonismo que cede cedo demais. O filme, ao optar pela reconciliação simbólica entre mãe e filha sem realmente escavar o abismo entre elas, entrega uma resolução que soa apressada — quase ingênua.
Mesmo assim, “Dumplin’” guarda momentos de sensibilidade rara. Em especial quando se permite tratar o luto não como um evento, mas como uma atmosfera contínua que atravessa todas as cenas. A perda de Lucy, a tia que acolhia Willowdean sem julgamento, é o verdadeiro ponto de ruptura. E embora o roteiro jamais se aprofunde plenamente nessa ausência, ela paira sobre a narrativa como lembrança de uma ternura já perdida — e da dificuldade de encontrar refúgio no presente.
O filme se equilibra em uma corda bamba entre a crítica e a celebração. Tenta desafiar os códigos de beleza, mas frequentemente os reafirma. Propõe diversidade, mas teme os conflitos que ela implica. Há, sim, uma intenção legítima de representar corpos e afetos não convencionais. Mas a hesitação em ir além do conforto narrativo transforma esse gesto em algo menos revolucionário do que se prometia.
“Dumplin’” é um filme que entende a importância da leveza, mas não arrisca o mergulho. Encosta-se na trilha sonora afetiva, no carisma das atrizes e em uma paleta emocional amigável, sem nunca pressionar o espectador a questionar de fato o que está vendo. Fica, portanto, a sensação de um caminho interrompido: a chance de transformar a passarela em arena política foi deixada de lado em nome da harmonia. E quando a harmonia vem fácil demais, a transformação tende a não acontecer.
★★★★★★★★★★