Ethan Hawke encarna um dos vilões mais macabros e diabólicos do cinema em terror de Scott Derrickson, na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Ethan Hawke encarna um dos vilões mais macabros e diabólicos do cinema em terror de Scott Derrickson, na Netflix

Ambientado nos subúrbios de Denver, no Colorado, em 1978, “O Telefone Preto” caminha sobre um terreno instável, onde o terror não vem apenas de um sequestrador mascarado, mas de uma realidade doméstica que já é, por si só, um cárcere. Finney e Gwen, irmãos ligados por um afeto resiliente, vivem sob o jugo de um pai alcoólatra e instável, cuja presença oscilante entre apatia e fúria serve de pano de fundo para o desaparecimento de Finney. Quando o menino é raptado por um assassino em série conhecido como O Sequestrador e trancado num porão à prova de som, inicia-se uma narrativa que, embora flerte com o sobrenatural, nunca se descola da matéria bruta do trauma. É nesse espaço de clausura e desespero que algo insólito se manifesta: um telefone preto, aparentemente desconectado, começa a tocar. As vozes que emergem da linha são dos meninos mortos antes dele — ecos de infâncias brutalmente interrompidas — que oferecem pistas para que Finney tente sobreviver ao algoz que os destruiu.

Scott Derrickson, em parceria com o co-roteirista C. Robert Cargill, com quem já havia trabalhado em “A Entidade”, adapta o conto homônimo de Joe Hill sem se render aos atalhos fáceis do susto previsível. O horror, aqui, é construído com uma contenção rara, ancorado em atmosferas densas e personagens que respiram verdade. A ambientação setentista não serve como vitrine de figurino vintage, mas como parte da arquitetura psicológica do filme — reforçada por uma trilha sonora que alterna entre canções da época e ruídos que tensionam a alma. Há um cuidado deliberado em mostrar que o medo não é monopólio do sobrenatural: ele nasce do cotidiano, da violência familiar, da impotência infantil diante de um mundo que não os protege.

O elenco infantojuvenil sustenta o eixo emocional da narrativa com um grau de maturidade impressionante. Mason Thames confere a Finney uma interioridade silenciosa, um tipo de coragem que se constrói na escuta, não na reação impulsiva. Madeleine McGraw, por sua vez, faz de Gwen uma personagem que desafia o arquétipo da criança-mística: ela não é apenas a mediadora espiritual, mas uma força ativa, uma figura de fé que não renuncia à lógica ou ao afeto. Jeremy Davies, no papel do pai, contorna com inteligência o risco de virar um estereótipo de abusador — e, mesmo nos gestos mais cruéis, há algo de exausto e derrotado que o humaniza. Já Ethan Hawke mergulha no abismo do vilão com uma abordagem inquietante: seu Sequestrador é errático, infantilizado, instável. As máscaras que usa — ora sorrindo, ora em silêncio apavorante — funcionam como mutações emocionais, revelando a fragmentação interna de alguém que parece mais um espectro do que um ser humano.

Apesar da força dramática e simbólica da história, o filme apresenta pequenos soluços formais que comprometem a coesão total da experiência. Há cenas que carecem de apuro técnico, como o jogo de beisebol mal coreografado ou a lógica imprecisa de uma rotina escolar que se rompe sem justificativa. Esses deslizes, ainda que não comprometam a integridade geral da narrativa, criam rachaduras na imersão, principalmente para o espectador mais atento à construção de verossimilhança. São detalhes que contrastam com o cuidado evidente em outros aspectos do filme, e que poderiam ser evitados com uma direção de arte mais minuciosa.

No entanto, “O Telefone Preto” encontra sua originalidade justamente na forma como o insólito se insinua na banalidade. O telefone que conecta vivos e mortos não é um truque de roteiro, mas uma chave simbólica: ele dá voz aos que foram silenciados, cria uma cadeia de solidariedade entre vítimas que, mesmo ausentes, resistem. Aqui, o sobrenatural não rompe a lógica, mas a amplia. A presença dos garotos mortos não exige fé cega do espectador — ela é construída com sutileza narrativa, com um lastro emocional sólido. A dor dessas vozes é palpável, e o que elas oferecem a Finney não é redenção milagrosa, mas estratégia, persistência e resistência.

A estrutura do filme se desdobra então num jogo de tensões progressivas, onde cada tentativa de fuga se soma a um acúmulo de aprendizados e frustrações. Finney não é um herói pronto: ele é moldado pela escuta, pela dor e pela memória dos que vieram antes. Isso subverte uma lógica comum no gênero, em que a salvação vem de fora ou por intervenção sobrenatural total. Aqui, ela é fruto de colaboração entre vivos e mortos, de uma espécie de pedagogia fúnebre que transforma o horror em manual de sobrevivência. Os mortos, portanto, não descansam: eles retornam não para assombrar, mas para instruir.

Há ainda uma escolha corajosa no filme: a de não justificar completamente o vilão. Em vez de fornecer flashbacks explicativos ou traumas de origem que redimam ou contextualizem sua crueldade, Derrickson prefere o mistério incômodo. O Raptor é uma ausência de sentido, uma presença que escapa à lógica da redenção ou da psicologização barata. Isso o torna mais perturbador: ele não é um monstro explicável, mas um vazio que consome.

Quando Finney se reconecta com o mundo, ele não retorna como um herói pleno, mas como alguém que sobreviveu à travessia de um inferno íntimo e coletivo. O reencontro com a irmã, o olhar para o pai quebrado, o caminhar pelos corredores da escola — tudo isso carrega o peso de um rito de passagem que não busca catarse, mas reconhecimento: algo foi perdido, mas algo também foi aprendido. É nesse intervalo, entre a morte e a sobrevivência, entre o trauma e a resiliência, que “O Telefone Preto” encontra sua potência mais duradoura.

Filme: O Telefone Preto
Diretor: Scott Derrickson
Ano: 2021
Gênero: Mistério/Terror/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★