A história mais linda e mais triste de amor, da literatura e do cinema, na Netflix Divulgação / Focus Features

A história mais linda e mais triste de amor, da literatura e do cinema, na Netflix

A redenção, em “Desejo e Reparação”, não é uma meta possível. É uma ficção tardia, formulada quando já não há nada a reparar. O filme, sob direção de Joe Wright, constrói um labirinto de arrependimento em que o tempo não apaga, apenas acentua o estrago. A personagem central, Briony Tallis, não é apenas a catalisadora da tragédia que atravessa o enredo: ela é a narradora que tenta, ao longo de uma vida inteira, reescrever os próprios erros por meio da linguagem. Nesse gesto, tão criativo quanto desesperado, a ficção aparece não como fuga, mas como uma tentativa inútil de reconstruir a dignidade das ruínas.

Aos treze anos, Briony não compreende a extensão do mundo adulto, tampouco a força das paixões que presencia. O olhar infantil, atravessado por vaidade literária e noções rígidas de moral, transforma gestos ambíguos em certezas absolutas. Mas, diferente de outras histórias que atribuem ao engano juvenil certa inocência perdoável, o filme recusa a condescendência. O erro cometido pela jovem — ao acusar Robbie Turner de um crime que não presenciou — não é apenas um mal-entendido: é um veredicto que selará o destino de todos os envolvidos. A partir daí, o filme se aprofunda em uma análise cruel da responsabilidade, da culpa e do que resta quando a verdade chega tarde demais.

Robbie, interpretado com contenção explosiva por James McAvoy, é o filho da empregada que circula na mansão dos Tallis como uma presença tolerada, nunca igual. Seu romance com Cecilia, irmã mais velha de Briony — vivida por uma Keira Knightley magnética —, já nasce cercado por tensões sociais, embora ambos tentem ignorá-las. Quando Briony intervém, o que está em jogo não é apenas um erro de percepção, mas a necessidade inconsciente de preservar uma ordem que beneficia os seus. A tragédia que se segue não pode ser lida sem considerar as estruturas de classe, os silêncios convenientes e o modo como o poder se camufla sob a capa da inocência.

A estrutura narrativa, fragmentada e não linear, espelha o processo mental de Briony adulta, que tenta recompor os fatos com a mesma obsessão de quem monta um quebra-cabeça de peças irreparavelmente danificadas. São versões que se sobrepõem, lacunas que se ampliam com o tempo, e uma reconstituição que nunca é completa. Cada salto temporal reabre feridas, não como um gesto de nostalgia, mas como um reconhecimento de que o passado jamais se oferece de forma íntegra. A guerra, que ocupa parte central da narrativa, não é apenas cenário histórico: ela funciona como extensão simbólica do caos emocional que antecede e sucede a catástrofe íntima. Em Dunquerque, Robbie se torna mais do que vítima de um erro judicial — torna-se o corpo anônimo de uma geração destroçada por decisões alheias.

Seamus McGarvey, responsável pela direção de fotografia, traduz essa devastação com imagens que oscilam entre o lirismo e o desespero. Há um brilho nostálgico nos campos ingleses da primeira parte, contraposto pelo horizonte cinzento e esmagador da guerra. A luz, nos momentos de ternura, parece suspensa — como se recusasse a seguir adiante. Mas o tempo avança, e o filme acompanha essa marcha implacável. A juventude idealizada cede espaço ao desencanto adulto. E a esperança, quando enfim se insinua, chega com gosto de mentira cuidadosamente construída.

A maturidade de Briony, interpretada sucessivamente por Romola Garai e Vanessa Redgrave, traz à tona a pergunta que atravessa todo o filme: é possível reparar o irremediável através da escrita? A resposta, embora nunca dada diretamente, pulsa em cada hesitação e em cada concessão narrativa. Ao conceder a Robbie e Cecilia, em seu último romance, a chance de viverem aquilo que a realidade lhes negou, Briony não oferece um desfecho alternativo, mas sim um gesto de desespero envernizado de generosidade. A ficção, nesse contexto, é tanto uma dádiva quanto uma covardia: um consolo para o leitor, um autoengano para a autora.

O filme não se alinha a romantizações fáceis nem ao sentimentalismo previsível. Em vez disso, mergulha nas zonas turvas do arrependimento, onde a culpa não liberta, apenas educa o olhar. Cada personagem é atravessado por uma forma particular de perda, e o que resta — cartas, lembranças, manuscritos — é apenas vestígio de algo que não volta mais. No fim das contas, o que realmente importa não é se Briony foi perdoada, mas se a literatura tem algum poder quando confrontada com o que o tempo já tornou irrecuperável.

Ao evitar qualquer gesto de redenção simplificada, “Desejo e Reparação” faz mais do que contar uma história: ele desestabiliza o pacto entre autor, leitor e verdade. Não é a ficção que salva; é ela que escancara a impossibilidade do resgate. O verdadeiro mérito do filme está nessa recusa de apaziguamentos. Ao fazer da linguagem um campo de batalha entre culpa e consolo, Wright nos oferece um retrato impiedoso de como a memória e o arrependimento constroem narrativas que só servem, no fim, para nos lembrar daquilo que já perdemos para sempre.

Filme: Desejo e Reparação
Diretor: Joe Wright
Ano: 2007
Gênero: Drama/Guerra/Mistério/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★