Inspirado em personagem de Clint Eastwood, faroeste com Liam Neeson está na Netflix Divulgação / Open Road Entertainment

Inspirado em personagem de Clint Eastwood, faroeste com Liam Neeson está na Netflix

Há algo quase ritualístico na presença de Liam Neeson no cinema de ação contemporâneo. Seus personagens surgem ano após ano como variações de um mesmo arquétipo: homens abatidos pelo tempo, com o olhar cansado e os punhos ainda precisos, prontos para proteger alguém ou vingar uma perda — não por heroísmo, mas porque não sabem mais ser outra coisa. “Na Mira do Perigo”, dirigido por Robert Lorenz, encarna esse ciclo com fidelidade quase litúrgica. A estrutura se repete: o protagonista relutante, a ameaça externa, a redenção possível. Mas por trás da fórmula exausta, esconde-se um filme que, mesmo sem romper os limites do gênero, ensaia pequenos desvios e fissuras, suficientes para suscitar algum interesse — especialmente quando o olhar se fixa nas entrelinhas, e não nos disparos.

Robert Lorenz, que por décadas acompanhou Clint Eastwood nos bastidores, carrega o peso de uma tradição clássica em sua segunda empreitada como diretor. Se em “Curvas da Vida” tentou replicar o tom crepuscular do velho mestre, aqui ele se apropria da iconografia do western moderno para conduzir uma narrativa que se equilibra entre a ação funcional e o drama contido. A estrada percorrida por Jim Hanson (Neeson), ex-fuzileiro com a alma em frangalhos e o rancho hipotecado, é menos sobre geografia do que sobre desgaste moral. Ao cruzar o caminho de Miguel, garoto mexicano em fuga de um cartel, Jim é confrontado com um dilema que já não tem espaço nos noticiários: o da responsabilidade afetiva entre estranhos, mesmo quando tudo em volta grita por indiferença.

O roteiro, assinado pelo próprio Lorenz ao lado dos estreantes Chris Charles e Danny Kravitz, escorrega com frequência em convenções previsíveis. Os vilões não têm rosto além da crueldade programada, os diálogos por vezes soam expositivos, e a lógica narrativa depende de coincidências generosas. Ainda assim, o filme se sustenta — não por mérito da história em si, mas pela insistência em desacelerar onde outros acelerariam. Há uma recusa tímida, porém visível, de transformar a jornada em um espetáculo de violência gratuita. No lugar disso, vemos silêncios desconfortáveis, trocas ríspidas que se suavizam aos poucos, e uma tentativa quase modesta de falar sobre perdas que não se reparam com tiros.

Neeson, confortável em sua persona de justiceiro fatigado, entrega o que se espera com competência quase automática. Mas é nos gestos contidos — o olhar que demora a se desviar, a hesitação ao tocar o ombro do menino, o cuidado em esconder o que sente — que o personagem ganha alguma espessura. Jim não é um herói regenerado; é um homem derrotado que, por não ter mais nada a perder, decide cumprir uma promessa feita no calor do caos. Sua relação com Miguel, inicialmente utilitária, transforma-se sem alarde em algo próximo de afeto genuíno. E são justamente esses momentos — os mais desarmados, os menos coreografados — que oferecem à narrativa uma respiração rara dentro do gênero.

A decisão do filme de evitar qualquer comentário político explícito sobre imigração ou fronteiras pode ser lida de duas formas: ou como covardia, ou como recuo estratégico. Em vez de um manifesto, “Na Mira do Perigo” opta por um recorte intimista, quase ingênuo, de um encontro entre dois sobreviventes que compartilham uma travessia. Mas mesmo nessa escolha existe uma tensão não resolvida. O cenário — o deserto árido, as patrulhas da fronteira, a presença constante da violência institucional — carrega consigo camadas que o filme reluta em explorar. O subtexto está ali, mas permanece à margem, como uma cicatriz que se prefere esconder.

Em certo momento, uma televisão ligada exibe “A Marca da Forca”, filme de Don Siegel protagonizado por Eastwood. A referência não é gratuita. Lorenz parece se colocar dentro de uma linhagem de cineastas que revisitam o mito do homem solitário, à beira da extinção, que encontra em um último gesto — muitas vezes inútil, mas simbólico — a chance de se reconciliar consigo mesmo. Se Eastwood construiu toda uma filmografia sobre essa figura crepuscular, Lorenz tenta ao menos herdar a melancolia que a acompanha. E é nessa tentativa, por vezes desajeitada, que “Na Mira do Perigo” encontra sua identidade.

Há quem veja nesse filme apenas mais um episódio na repetição infindável do justiceiro de meia-idade. E não seria uma leitura equivocada. Mas há também um outro caminho: o de enxergar em suas dobras uma espécie de resistência involuntária ao cinismo absoluto. Não há reinvenção aqui, tampouco inovação. Mas há honestidade — ainda que parcial — no modo como lida com a culpa, a perda e a possibilidade de redenção tardia. Talvez isso não baste para reerguer o gênero, mas é o suficiente para lembrar que mesmo os formatos desgastados podem, em momentos específicos, acolher gestos de humanidade inesperada.

Filme: Na Mira do Perigo
Diretor: Robert Lorenz
Ano: 2021
Gênero: Ação/Drama/Faroeste/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★