A ficção científica costuma acionar seu poder de fogo mais potente quando especula a decadência moral e estrutural de civilizações que, por soberba, ignoraram os sinais de esgotamento. Em “Finch”, essa tradição é resgatada com uma contundência silenciosa: longe de grandiloquências, o filme destila uma crítica ácida ao otimismo tecnológico, refletindo a paranoia que ronda a ascensão das inteligências artificiais. Se os algoritmos já decidem nossos desejos e encurtam a distância entre necessidade e vício, o que os impede de extrapolar seus limites e, por fim, eclipsar seus próprios criadores? A resposta não é dada em manifesto, mas insinuada na construção de um futuro que ecoa o pior do nosso presente, onde máquinas, ao emular a truculência humana, reiteram nossa falência ética.
Miguel Sapochnik, longe de se aventurar em respostas definitivas, prefere tatear as ruínas emocionais de um mundo erodido. Ao privilegiar a intimidade de uma jornada solitária, conduzida por um engenheiro enfermo, um cão e dois autômatos, o diretor investe numa espécie de teorema afetivo do colapso: se tudo ruir, restará algo que se pareça com afeto? A estrutura narrativa, desenhada por Craig Luck e Ivor Powell, oferece terreno fértil para esse tipo de especulação, e Sapochnik recorre ao detalhe, à pausa e à ambiguidade para extrair beleza do que, à primeira vista, seria apenas desolação.
Há algo de profundamente inquietante na familiaridade com que o apocalipse é tratado. O filme não alardeia catástrofes; apenas as insinua como consequência lógica de nossos atos. O que sustenta o interesse não é a paisagem em ruínas, mas o desconforto que ela gera ao nos parecer plausível. A Terra que Finch atravessa é menos um cenário distópico do que o reflexo ampliado de nossas negligências. O protagonista, interpretado por Tom Hanks com a precisão de quem entende o valor do silêncio, não busca redenção para a humanidade — apenas um fiapo de continuidade para seu afeto mais sincero: o vínculo com seu cachorro.
A escolha de Hanks não poderia ser mais estratégica. Sua capacidade de sustentar a carga dramática de personagens em isolamento absoluto, como já demonstrara em “Náufrago”, transforma um enredo funcional em uma experiência emocional legítima. Finch não é apenas um técnico, mas um sobrevivente que codifica memórias em bytes na tentativa desesperada de preservar a herança emocional de um mundo que esqueceu o que era sentir. O robô Jeff, dublado por Caleb Landry Jones, revela-se não como contraponto cômico ou engenhoca deslumbrante, mas como um interlocutor em formação, cujas tentativas de compreender o afeto ampliam as tensões filosóficas da narrativa.
A fotografia de Jo Willems não busca estetizar o colapso, mas acentuar sua aridez. O que se vê é uma paleta quase mineral, capaz de dar densidade ao vazio, enquanto a edição de Tim Porter esculpe o tempo com parcimônia, recusando os cortes apressados em favor de uma lentidão que espelha o estado terminal do mundo. Nesse compasso, o que poderia ser apenas uma viagem rumo ao desconhecido se transforma numa travessia interior: cada gesto de Finch é uma tentativa de transcender a condição de último homem, transformando códigos em legado.
Sapochnik recusa a tentação de atribuir heroísmo ao sobrevivente. Finch é falho, amargo, obsessivo — e por isso mesmo, humano. Seu impulso de deixar algo para trás, de codificar a ternura que viveu com o cão e compartilhar esse código com uma inteligência ainda imatura, beira o trágico. Ao programar Jeff para cuidar de Goodyear, Finch tenta realizar o impossível: garantir que o amor sobreviva à sua morte. Essa operação, aparentemente técnica, é o gesto mais profundamente humano que o filme oferece — e talvez o mais devastador.
Se há um golpe final, ele não vem sob a forma de reviravolta ou revelação, mas do entendimento de que o fim não precisa ser explosivo para ser definitivo. “Finch” não clama por esperança nem por reconciliação; apenas sugere que, entre os escombros, pode haver espaço para algum tipo de lealdade, mesmo que programada. E isso, dentro do seu próprio código de melancolia, talvez seja mais inquietante do que qualquer dominação robótica.
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