A pergunta que Tolstói fez há 140 anos, Kurosawa traduziu em cinema — e agora ressurge no Prime Video com uma delicadeza que pode mudar sua vida Divulgação / Film4

A pergunta que Tolstói fez há 140 anos, Kurosawa traduziu em cinema — e agora ressurge no Prime Video com uma delicadeza que pode mudar sua vida

Histórias como a de “Viver” não são incomuns. Esses dias, li que um milionário ranzinza deixou sua fortuna para a única garçonete que aceitava atendê-lo. Williams, o protagonista interpretado com a genialidade habitual por Bill Nighy, não é nenhum nababo nem tão ruvinhoso, mas juntou um bom dinheiro ao longo de uma vida frugal, até ficar sabendo que padece de um câncer no aparelho digestivo que o matará brevemente. Muito antes de seu último ato, Oliver Hermanus esmiúça a tediosa vida de Williams, voltando ao filme de mesmo título lançado por Akira Kurosawa (1910-1998) em 1952, mas lançando mão de muita personalidade ao deslocar o enredo de Tóquio para Londres já na abertura, quando reforça o vermelho dos ônibus típicos de dois andares da capital da Inglaterra, contando com a fotografia envelhecida de Jamie D. Ramsay. Hermanus inspira-se em Kurosawa, que por seu turno propõe uma versão para “A Morte de Ivan Ilitch” (1886), de Liev Tolstói (1828-1910), provando que em arte tudo sempre pode ser refeito, desde que com juízo e beleza. E nenhum dos dois falta a “Viver”.

Williams, o chefe do Departamento de Obras Públicas, faz um balanço de sua vida depois de o médico lhe dizer que tem no máximo nove meses de sobrevida. Ele faz um esforço para não se abalar, comparecendo à repartição com o mesmo chapéu-coco, dirigindo-se aos colegas com lhaneza e tentando adiantar requerimentos como o de um grupo de senhoras da periferia, ávidas por um parquinho para onde possam levar os filhos pequenos durante o dia. O roteiro de Kazuo Ishiguro é quase todo ancorado no provecto anti-herói de Nighy, um dos intérpretes mais rigorosos de sua geração, hábil em transmitir a quem assiste a dificuldade de Williams quanto a assimilar as incessantes metamorfoses da sociedade pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), uma sensação que o ator possivelmente divide com o homem melancólico a quem dá vida, num mundo assolado por influenciadores digitais tornados celebridades instantâneas, riquíssimos e orgulhosos de sua ignorância. O ambiente de trabalho de Williams é composto por homens muito mais jovens, incluindo o novato Peter Wakeling, de Alex Sharp, e uma moça, Margaret Harris, de quem se aproxima num momento de inédita fragilidade.

O drama de Williams toma cores mais fortes na segunda metade, quando ele confidencia à senhorita Harris seu segredo, e ela igualmente tem vontade de confessar que o chamava de Senhor Zumbi, “alguém que está morto, mas não está”. Comediante nata, à Judy Holliday (1921-1965) do divertido (e filosófico) “Nascida Ontem” (1950), de George Cukor (1899-1983), Aimee Lou Wood confere uma graça inaudita a “Viver” ao personificar a ingenuidade sábia e compassiva, que não espera recompensas e transforma em ouro o que quer que toque. Margaret não cura o novo velho amigo, mas deixa o pouco tempo que lhe resta menos penoso, mensagem de esperança que o misantrópico Tolstói quis passar 140 anos atrás.

Filme: Viver 
Diretor: Oliver Hermanus
Ano: 2022
Gênero: Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.