Suspense com Dennis Quaid na Netflix vai te fazer se perguntar: e se fosse comigo? Divulgação / Screen Gems

Suspense com Dennis Quaid na Netflix vai te fazer se perguntar: e se fosse comigo?

Há algo desconfortavelmente hipnótico em observar uma fachada de normalidade se esfarelar sob o peso da obsessão. “Hóspede Indesejado”, dirigido por Deon Taylor, opera justamente nesse espaço tênue entre o cotidiano e o delírio, onde o familiar se transmuta em ameaça com uma naturalidade perturbadora. Muito além de um thriller convencional sobre invasão de domicílio, o filme se revela como um estudo enviesado das máscaras sociais, da masculinidade tóxica e da fragilidade das aparências — ainda que nem sempre explore essas camadas com a precisão que insinua possuir.

A estrutura narrativa se ancora em um trio de performances que orbitam entre o previsível e o magnético. Meagan Good e Michael Ealy interpretam um casal em busca de recomeço, adquirindo uma casa no campo cuja imponência arquitetônica não esconde o incômodo resquício de seus antigos donos. O que deveria simbolizar liberdade e ascensão logo se transforma em território minado, graças à figura de Charlie Peck, interpretado por Dennis Quaid. É aqui que o filme encontra seu eixo mais pulsante: Quaid compõe um vilão com a energia de um veterano disposto a saborear cada nuance do desequilíbrio, um antagonista cuja ameaça está justamente no modo como esconde a loucura sob uma couraça de cordialidade. 

Compará-lo a figuras como Jack Torrance, Travis Bickle ou Patrick Bateman é inevitável, mas injusto se encarado como uma tentativa de emulação. Quaid cria algo próprio — um homem que não explode, mas escava lentamente sua presença na vida alheia. Ele não invade, infiltra-se. E nessa construção, o longa encontra a tensão que o sustenta mesmo quando o roteiro vacila.

A casa onde a história se desenrola é menos um pano de fundo e mais um organismo silencioso. Suas linhas elegantes, seus espaços abertos e bem iluminados contrastam com a claustrofobia psicológica que vai se acumulando, cena após cena. Não é preciso recorrer ao sobrenatural quando o horror pode brotar de algo tão simples quanto um olhar prolongado demais, um retorno inesperado, uma ausência que não se justifica. A trilha sonora colabora nesse jogo, escapando dos acordes previsíveis do gênero para mergulhar em composições contemporâneas que reforçam a sensação de deslocamento. Há uma ambição estética clara, ainda que nem sempre executada com a consistência desejada.

Boa parte do mérito está em como o filme se dedica a estabelecer o desconforto, mesmo sabendo que o terreno onde pisa já foi amplamente explorado. Não há grande inovação estrutural, mas há esforço genuíno em extrair da fórmula algo mais atmosférico do que sensacionalista. E, por um tempo, isso funciona. O problema é que, como tantos thrillers de vocação comercial, “Hóspede Indesejado” parece não confiar plenamente na paciência do espectador. Os trailers, ao entregar boa parte das viradas, sabotam o impacto de revelações que poderiam ter sido mais eficazes. E o clímax — apressado, ansioso por resolver o conflito — abdica da ambiguidade em nome de um desfecho higienizado, incapaz de sustentar a complexidade que o filme flertou durante sua construção.

As decisões tomadas pelos personagens, que até então vinham sendo desenhadas com certa coerência emocional, se tornam subitamente ingênuas. É um problema recorrente em produções do gênero: o medo de frustrar o público leva a escolhas de roteiro que sacrificam a verossimilhança em troca de resoluções fáceis. E ainda que o carisma dos protagonistas amorteça parte desse efeito, a sensação de potencial desperdiçado é inevitável. O longa se aproxima do brilhantismo, mas recua antes de ultrapassar a linha que separa o seguro do inesquecível.

Curiosamente, o que muitos críticos enxergaram como limitações, parte do público entendeu como virtudes. A previsibilidade, para alguns, é conforto narrativo. A construção arquetípica dos personagens, longe de ser um demérito, serve como ponte para identificação rápida e eficaz. E nesse sentido, o sucesso comercial de “Hóspede Indesejado” não é um acaso, mas um reflexo de sua competência em entregar o que promete. Sem pretensão de reinventar o gênero, o filme se contenta em habitá-lo com competência e certo charme retrô. 

Se há algo de valor que persiste após os créditos finais, é a inquietação provocada por Charlie Peck. Sua figura permanece rondando a memória do espectador, não por suas ações extremas, mas pelo modo como se insinuou em cada fresta da narrativa. Ele é menos um psicopata clássico e mais um espelho deformado de impulsos sociais não resolvidos — o homem que não aceita ser substituído, que enxerga a casa como extensão do próprio ego, que transforma rejeição em possessividade. E é nessa leitura simbólica que “Hóspede Indesejado” alcança sua camada mais relevante.

Assistir a esse filme é menos sobre descobrir o que vai acontecer e mais sobre observar como a tensão se constrói — e como ela colapsa. A jornada pode ser irregular, mas há nela lampejos de um cinema interessado em mais do que sustos baratos: um cinema que tenta dialogar com os medos reais, cotidianos, travestidos de cordialidade. E mesmo quando falha, o faz tentando manter a elegância.

Filme: Hóspede Indesejado
Diretor: Deon Taylor
Ano: 2019
Gênero: horror/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★