As sociedades contemporâneas vivem obcecadas por segredos — não os que protegem a estabilidade dos Estados, mas os que alimentam mitos de traição interna, dossiês ocultos e alianças subterrâneas. No centro dessa pulsão paranoica está a crença de que a verdade foi sequestrada e trancafiada por instituições que operam à margem da moral pública. “Protegendo o Inimigo” canaliza esse imaginário não para subvertê-lo, mas para explorá-lo com a urgência de quem sabe que a ilusão do controle já ruiu. Não é a busca por justiça que move os personagens, mas o desespero em não desaparecer na engrenagem brutal do poder. A CIA, nesse contexto, não é pano de fundo: é um organismo em colapso, cuja falência moral contamina tudo que toca, inclusive seus próprios agentes.
A narrativa se ancora na tensão entre dois homens que encarnam polos de uma mesma patologia institucional. Matt Weston é a promessa de integridade à espera de reconhecimento; Tobin Frost, a ruína consciente de um sistema que já não distingue traição de lucidez. O vínculo forçado entre eles atravessa não apenas perseguições e interrogatórios, mas a erosão de qualquer certeza sobre quem serve a quem. A suposta missão de transporte de um prisioneiro, banal no papel, transforma-se em liturgia da desconfiança, onde os mapas não conduzem à salvação, mas à revelação de que a podridão está no centro da máquina. A África do Sul, com suas cicatrizes visíveis e paisagens que contrastam beleza natural com violência urbana, não serve como mera locação exótica: é um espelho brutal das políticas que o Ocidente prefere externalizar — guerras por procuração, vidas descartáveis e a certeza de que nada será documentado.
Denzel Washington se move como um corpo em órbita de si mesmo — impassível, letal e consciente de que sua mera presença já distorce a lógica das cenas. Seu Frost não é uma vítima nem um vilão tradicional, mas um sobrevivente de batalhas ideológicas que já não encontram eco no discurso oficial. Em contraste, Ryan Reynolds constrói Weston com camadas de ansiedade mal disfarçada e idealismo em desintegração, compondo um personagem que sangra por não saber onde termina o dever e começa a manipulação. Essa assimetria entre os protagonistas é a verdadeira força propulsora do filme, não porque subverte arquétipos, mas porque os desgasta até revelar o que resta depois que toda narrativa de heroísmo é demolida.
Daniel Espinosa opta por uma encenação que privilegia o impacto físico à clareza formal. A câmera instável, os cortes bruscos e a trilha sonora inquieta não buscam apenas estilizar a ação, mas provocar um estado de confusão sensorial que mimetiza a instabilidade das relações entre os personagens. No entanto, há momentos em que o filme ameaça sucumbir ao peso de suas próprias pretensões, interrompendo o fluxo da ação para diálogos que simulam profundidade, mas que expõem a fragilidade de um roteiro que não sabe o que fazer com o tempo que exige do espectador. Ainda assim, há méritos incontestáveis: o uso da geografia urbana como extensão do conflito, a montagem que recusa linearidade emocional e o olhar não complacente para a devastação que acompanha cada decisão burocrática travestida de patriotismo.
Os personagens secundários orbitam esse núcleo tenso sem jamais desviar o foco do tema central: a erosão da confiança como motor narrativo. Vera Farmiga, Brendan Gleeson e Sam Shepard interpretam variantes do cinismo institucionalizado, figuras que falam a língua do poder sem revelar qualquer vestígio de humanidade. Já Ruben Blades e Joel Kinnaman surgem como espectros do passado e do futuro possíveis — um desencantado que se recusa a esquecer, o outro ainda brutalizado pela promessa de ascensão. A sequência de perseguição em Langa, com Frost pulando de telhado em telhado enquanto casas são reduzidas a entulho, não é apenas um espetáculo técnico: é a encenação nua da lógica imperial que, ao tentar proteger segredos, destrói lares. O título do filme, portanto, não é irônico — é uma denúncia involuntária de uma política de proteção que só conhece uma forma de garantir segurança: eliminando tudo que ameace sua narrativa.
O filme não oferece redenção nem reconciliação. Sua força está na recusa de entregar respostas fáceis ou heróis confortáveis. “Protegendo o Inimigo” é menos uma história de espionagem do que um experimento sobre até que ponto se pode confiar em estruturas que se alimentam da duplicidade. É uma história sobre o preço da lealdade em ambientes onde a verdade é constantemente leiloada, e sobre homens que, mesmo tentando sobreviver, já foram engolidos por um sistema que não admite inocentes — apenas cúmplices e cadáveres. Não há aprendizado, apenas sobrevivência, e nem isso é garantido. O que fica é a suspeita de que a maior ameaça nunca esteve do lado de fora, mas sempre se moveu entre sorrisos treinados, promessas patrióticas e contratos de silêncio.
★★★★★★★★★★