Dois anos após seu lançamento, nenhum filme de ação conseguiu superar a obra-prima de Keanu Reeves — no Prime Video Divulgação / Summit Entertainment

Dois anos após seu lançamento, nenhum filme de ação conseguiu superar a obra-prima de Keanu Reeves — no Prime Video

Há algo de quase litúrgico na maneira como “John Wick: Capítulo 4” se posiciona no centro da arena contemporânea dos filmes de ação. Não é apenas uma sequência ou um encerramento; é um rito de passagem, uma investida derradeira contra a diluição do gênero. O diretor Chad Stahelski — ele próprio oriundo das trincheiras do corpo em movimento, da física do impacto — orquestra esse capítulo com a convicção de quem compreende que a violência coreografada pode carregar mais verdade estética que muitos discursos. O retorno de Keanu Reeves, quatro anos após “Parabellum”, não se limita à retomada de uma narrativa: é a reafirmação de um código moral insculpido a bala e silêncio.

Ao contrário do inchaço narrativo que afoga tantas franquias, “Capítulo 4” abraça uma estrutura elementar com ares de missão mitológica. John Wick, novamente foragido, não enfrenta apenas os algozes da Alta Cúpula — entidade que rege o submundo como um culto de regras e execuções —, mas o esgotamento existencial de quem já perdeu tudo, exceto a própria recusa em desaparecer. O Marquês de Gramont (Bill Skarsgård) encarna o novo rosto do poder: um aristocrata mimado travestido de estrategista, disposto a higienizar a máquina que sustenta. A viagem de Wick até o Japão, o reencontro com antigos aliados e o confronto com Caine (Donnie Yen), um adversário cego de sentidos aguçados, marcam não apenas escalas geográficas, mas colisões filosóficas — como se cada combate refletisse não uma simples disputa física, mas versões divergentes da honra.

Há uma precisão quase cirúrgica na maneira como o filme articula seus conflitos. Stahelski e sua equipe rejeitam a trivialidade dos cortes frenéticos em prol de composições amplas, em que o movimento é tratado com reverência. Cada sequência de luta é construída como se fosse uma peça autônoma de dança sangrenta — ora ritualística, ora explosiva — mas sempre guiada por um princípio de clareza que falta a boa parte do cinema de ação contemporâneo. É possível entender, em cada embate, não apenas o que está em jogo, mas o caminho exato que Wick precisa trilhar: tempo, espaço, obstáculos. Como num jogo brutal de progressão por níveis, onde o protagonista avança não por invulnerabilidade, mas por convicção.

O mundo em torno de Wick permanece inquietantemente indiferente. Na boate onde corpos dançam enquanto cadáveres caem, ou no trânsito caótico ao redor do Arco do Triunfo, onde os carros seguem seu fluxo alheios ao tiroteio em andamento, a mise-en-scène sugere que o universo perdeu a capacidade de reagir à violência — ou talvez apenas a aceite como parte da rotina. Essa escolha estética não apenas potencializa o impacto visual das cenas, mas reconfigura a noção de realismo: o mundo de “John Wick” é menos uma representação do que uma alegoria funcional, onde a morte é tratada com precisão quase matemática.

Há, ainda, uma elegância deliberada na fotografia de Dan Laustsen. Em vez de ocultar a brutalidade sob sombras imprecisas, ele a ilumina com nitidez quase escultural. As cores vibram, os contrastes se intensificam e cada cenário — do Continental de Osaka às escadarias de Montmartre — torna-se um palco dramático onde a ação é performada com rigor coreográfico. O impacto visual não está no excesso, mas na exatidão com que a câmera se posiciona para capturar o essencial do movimento.

Reeves, por sua vez, encarna uma versão destilada de seu personagem. Seu John Wick fala pouco, mas comunica uma exaustão emocional que transcende o roteiro. O olhar cansado, os gestos controlados e a cadência meticulosa de seus movimentos denunciam um homem que já morreu várias vezes por dentro, mas que insiste em permanecer. O elenco ao redor funciona como ecos dessa jornada: Donnie Yen imprime humanidade a um assassino relutante; Shamier Anderson introduz um jogador à parte, movido pelo cálculo e pela espera; Hiroyuki Sanada e Rina Sawayama dão contorno emocional a um núcleo que reverbera valores em extinção. E há, claro, o cachorro — presença que evoca a origem de tudo e reafirma, no gesto mais simples, o valor da lealdade.

O filme flerta, por vezes, com a tentação da grandiloquência. Algumas cenas iniciais poderiam ser mais enxutas, sem prejuízo da cadência geral. Ainda assim, essa leve dilatação temporal parece uma concessão calculada ao espectador devoto: um presente embalado em esmero visual, intensidade física e comprometimento dramático. “Capítulo 4” não busca o virtuosismo gratuito; ele o conquista ao dobrar a complexidade dentro da simplicidade — ao tornar legível a violência, inteligível o silêncio e palpável o cansaço.

Mas talvez o feito mais notável deste capítulo final seja sua capacidade de ressignificar o próprio personagem. Wick já não é mais apenas o justiceiro imbatível: ele é a memória de uma promessa rompida, a cicatriz de um pacto violado, o último bastião de um código que não cabe mais no mundo ao seu redor. Ao fim, o que resta é a impressão de que “John Wick” não sobrevive porque é forte — ele sobrevive porque se recusa a deixar que a lógica da Alta Cúpula defina seu destino. E isso, no fundo, é o gesto mais radical que se pode esperar de um filme de ação em nosso tempo.

Filme: John Wick 4: Baba Yaga
Diretor: Chad Stahelski
Ano: 2023
Gênero: Ação/Mistério
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★