Thriller policial com Nicolas Cage vai te deixar com os olhos vidrados e o coração na boca, na Netflix Divulgação / Lionsgate Films

Thriller policial com Nicolas Cage vai te deixar com os olhos vidrados e o coração na boca, na Netflix

Há algo de particularmente incômodo quando o horror se esconde sob a aparência de normalidade — e mais ainda quando essa aparência é composta de neve limpa, ruas silenciosas e um céu que parece eternamente suspenso em uma luz pálida. “Sangue no Gelo”, filme dirigido por Scott Walker e inspirado em eventos reais, entra justamente nesse território: o de uma América congelada, literal e simbolicamente, onde crimes hediondos prosperaram por anos à margem da atenção pública. É uma narrativa que se recusa a embelezar ou diluir sua matéria-prima: o sofrimento real, a negligência sistemática e a violência praticada como hábito.

A história se desenrola em Anchorage, Alasca, entre os anos 1980, período em que o boom da indústria petrolífera contrastava violentamente com os becos tomados por tráfico, prostituição e redes de exploração comandadas por figuras intocáveis. Nesse espaço fragmentado entre riqueza e decadência, o desaparecimento contínuo de mulheres — em sua maioria jovens em situação de vulnerabilidade extrema — era tratado como estatística descartável. É nesse vácuo ético que se movimenta Robert Hansen, um assassino serial que por mais de uma década caçou suas vítimas em silêncio, voando com elas para áreas remotas e transformando o Alasca num campo de extermínio invisível.

Ao escolher um tom contido, quase documental, “Sangue no Gelo” opta por não dramatizar o que já é, por si só, insuportavelmente dramático. A câmera de Walker permanece sóbria mesmo diante das piores revelações, permitindo que o peso da verdade fale por si. Nicolas Cage, em interpretação que abdica de maneirismos, dá vida ao detetive Jack Halcombe — um homem à beira da exaustão, mas ainda assim incapaz de virar o rosto para o padrão evidente de impunidade. Halcombe não é movido por heroísmo, mas por uma persistência silenciosa que beira a obsessão: a de, pelo menos uma vez, impedir que mais um corpo desapareça sob o gelo sem deixar rastro.

A chave para a reviravolta na investigação está em Cindy Paulson, interpretada por Vanessa Hudgens em seu papel mais visceral. Sobrevivente de um sequestro cometido por Hansen, a personagem carrega a marca de alguém que não teve escolha senão crescer em meio à violência, e cuja voz constantemente esbarra no descrédito institucional. Sua relação com Halcombe é o eixo mais potente da narrativa: dois personagens de origens completamente distintas, unidos pela convicção de que não basta denunciar o mal — é preciso provar sua existência em um sistema que se recusa a vê-lo.

John Cusack, por sua vez, entrega uma das atuações mais inquietantes de sua carreira. Sua composição de Robert Hansen é assombrosamente precisa: um homem medíocre, de fala mansa, padeiro de profissão, cujos crimes desafiam a lógica justamente por estarem fora dos estereótipos esperados. Ao recriar os métodos do assassino — sequestrar mulheres, soltá-las na mata, caçá-las como se fossem presas selvagens — o filme alcança um grau de brutalidade difícil de suportar. E, ainda assim, resiste à tentação do sensacionalismo. A crueldade é mostrada como o que é: banal, repetitiva, desumanizante. Sem estética. Sem charme.

O filme também compreende a geografia como elemento narrativo. A vastidão branca do Alasca, longe de ser mero cenário, atua como extensão simbólica da indiferença coletiva. A paisagem, bela e morta, torna-se cúmplice involuntária dos crimes: sua imensidão permite o esquecimento, sua frieza mascara o rastro do sangue. E é nesse silêncio glacial que “Sangue no Gelo” constrói sua acusação mais forte — não apenas contra um homem, mas contra uma cultura que decidiu não escutar.

Embora a narrativa simplifique alguns eventos e personagens — um recurso comum em adaptações cinematográficas baseadas em casos reais — a fidelidade emocional do enredo é preservada. Mais do que detalhar a mecânica dos crimes, o longa busca iluminar os mecanismos sociais e institucionais que permitiram que Hansen agisse com liberdade por tanto tempo. A omissão da polícia, a estigmatização das vítimas, o descaso judicial: todos esses elementos são apresentados com a precisão de quem entende que o horror, muitas vezes, está menos no ato em si e mais na permissão que o cerca.

Para quem deseja ir além da superfície fílmica, o livro “Jogo Justo”, de Bernard DuClos, oferece uma perspectiva mais ampla e devastadora. A obra investiga as raízes profundas da barbárie: desde os primeiros sinais ignorados de distúrbios na juventude de Hansen até o modo como o crescimento econômico de Anchorage serviu de fachada para uma decadência moral progressiva. O livro desnuda aquilo que o cinema apenas esboça: a teia de omissões, interesses e desprezo que pavimentou o caminho do assassino.

“Sangue no Gelo” não busca se colocar como peça de prestígio ou fazer rodeios estéticos para atingir impacto. Ao contrário: sua força está justamente na recusa ao artifício, na crueza ética e na clareza com que aponta para um tipo de violência que só prospera quando ignorada. O filme propõe algo além da indignação pontual: convida à responsabilidade coletiva. Porque, no fim, os corpos enterrados sob o gelo não foram ocultados apenas pela neve — foram silenciados por uma sociedade inteira.

Filme: Sangue no Gelo
Diretor: Scott Walker
Ano: 2013
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★