Um dos filmes mais premiados da história da Netflix — com 13 indicações ao Oscar em 2025 — está disponível no Brasil apenas no Prime Video Divulgação / Pathe Films

Um dos filmes mais premiados da história da Netflix — com 13 indicações ao Oscar em 2025 — está disponível no Brasil apenas no Prime Video

Há algo desconcertante — e por isso mesmo fascinante — no modo como Jacques Audiard concebe “Emilia Pérez”. O que se vê não é uma narrativa sobre o México, mas a edificação deliberada de um delírio coreografado que transforma os códigos do melodrama em laboratório estético e político. Em lugar de um retrato social, a produção oferece uma provocação estética: um musical delirante que se aloja no terreno mais delicado da representação — o das identidades em trânsito —, sem jamais esconder sua artificialidade. O México, aqui, é projeção, não cenário; metáfora de um território onde a brutalidade e o afeto não se opõem, mas coexistem em tensão permanente. E é nesse campo de fricções que a personagem central se revela: Manitas Del Monte, narcotraficante implacável, decide evaporar sua existência para reconstruí-la sob outro nome, outro corpo, outra narrativa. Ao renascer como Emilia Pérez, não busca escapar de sua história, mas reescrevê-la à força — ainda que os escombros do passado persistam como cicatrizes abertas.

A inquietação que percorre o filme não reside apenas na trajetória da personagem-título, mas na própria linguagem que a molda. Audiard insere a música como fio condutor de um enredo que jamais se contenta com a verossimilhança. Cada número musical, longe de servir à ornamentação, atua como intensificador de uma subjetividade em conflito. Os figurinos excessivos, as coreografias cirurgicamente dissonantes e os cenários falsificados não mascaram a violência — a amplificam. E, paradoxalmente, é dessa irrealidade que brota uma forma de verdade. Quando Rita, advogada cética e exausta, é envolvida na operação clandestina que permitirá a transformação de Manitas, seu dilema ético deixa de ser uma simples oposição entre certo e errado: ela se vê mergulhada em uma dramaturgia que dissolve fronteiras morais em favor de um pacto ambíguo. A promessa de dinheiro e propósito a atrai, mas o que a prende é algo mais indecifrável — talvez o desejo de se ver numa história com sentido, ainda que construída sobre a mentira.

Nada em “Emilia Pérez” se presta a leituras unívocas. Karla Sofía Gascón, atriz trans que vive Manitas/Emilia, não interpreta um símbolo: encarna uma figura contraditória que ora seduz, ora assombra, deslocando as expectativas tanto do público quanto das estruturas convencionais de redenção. Emilia funda uma ONG, ampara famílias de desaparecidos, busca justiça em nome de vítimas que, em alguma medida, ela mesma ajudou a produzir. Essa equação moral não fecha — e o filme sabe disso. A tentativa de anular a responsabilidade pelo que foi feito sob outro nome e outro gênero não é uma falha do roteiro, mas seu nervo central. Emilia não quer apagar o passado: quer domesticá-lo. E nesse esforço, expõe a lógica perversa que frequentemente move as figuras públicas em busca de reabilitação simbólica. Não há redenção genuína quando o arrependimento é instrumentalizado para reconfigurar a própria imagem. Emilia quer ser outra sem abrir mão do controle que sua persona anterior lhe conferia — como se o gesto de transição bastasse para anular a violência do que veio antes.

A estrutura narrativa acompanha essa duplicidade com inteligência formal. A música, por exemplo, é usada não como catarse, mas como amplificador de opacidades. Os números interpretados por Zoe Saldaña e Selena Gomez não suavizam as contradições — as tornam mais visíveis. Rita canta suas dúvidas com a mesma convicção com que consente no crime. Jessi, esposa de Manitas, reaparece como figura melancólica, ferida por uma ausência que não entende, desamparada por uma nova identidade que não sabe nomear. Os filhos, por sua vez, reconhecem o perfume do pai no corpo da nova mãe — uma cena construída com precisão simbólica que contorna o melodrama e toca o impensável: o afeto que sobrevive à devastação. A performance de Gascón atravessa tudo isso como uma lâmina: contida, fria, porém vulnerável em seus silêncios. Não se trata de convencer o espectador de que Emilia é outra pessoa, mas de confrontá-lo com o desconforto de que talvez não seja — ou que seja apenas na superfície.

O incômodo estético que o filme provoca se estende à sua posição no mercado global. Ainda que não se proponha a representar o México autêntico, “Emilia Pérez” inevitavelmente ocupa um lugar simbólico: o de uma produção estrangeira que fala em nome de dores alheias. Com elenco multinacional e distribuição garantida por plataformas de alcance massivo, a narrativa criada por Audiard alcançará mais olhos do que qualquer produção independente mexicana que trate do mesmo tema com maior proximidade cultural. Esse dado não pode ser ignorado. Ao mesmo tempo, tampouco se pode reduzir a obra à crítica de apropriação. Audiard não encena um México real — e não pretende fazê-lo. Seu interesse está na criação de um espaço alegórico onde os dilemas de identidade, violência e recomeço possam ser tratados com a liberdade que a realidade interditaria. A réplica de um mundo permite dizer o que o mundo real talvez não permita ouvir. A questão, então, não é se ele tem “direito” de contar essa história, mas o que faz com esse direito. E, nesse caso, ele tensiona, arrisca, confronta — em vez de confortar.

A contundência de “Emilia Pérez” não reside em seu roteiro nem em suas melodias, mas na dissonância estrutural que sustenta sua narrativa. Ao unir opostos — musical e narcoficção, redenção e oportunismo, espetáculo e luto —, o filme se recusa a adotar uma linguagem unívoca. E essa recusa é, talvez, sua maior ousadia. Emilia não é heroína nem vilã. Rita não é cúmplice nem redimida. Jessi não é vítima nem agente de ruptura. Cada uma dessas figuras transita em zonas cinzentas que desafiam os maniqueísmos habituais. E quando o filme se encaminha para seus momentos finais, o que se impõe não é uma resposta, mas uma pergunta incômoda: é possível reconstruir a si mesmo quando se escolhe esquecer o que se destruiu? “Emilia Pérez” não responde. Mas obriga a pensar. E esse gesto — de desorganizar para provocar — vale mais do que qualquer lição moral.

Filme: Emilia Pérez
Diretor: Jacques Audiard
Ano: 2024
Gênero: Crime/Musical
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★