Há momentos em que o cinema ousa atravessar territórios que já pareciam exauridos, desafiando não apenas convenções narrativas, mas sobretudo os limites da representação simbólica. “Virgem Maria”, lançado em 2024, é um desses raros movimentos. Ao se debruçar sobre a figura da mãe de Jesus, o filme não procura reiterar dogmas nem ilustrar passagens conhecidas; o que ele propõe é um gesto radical de escuta: e se, pela primeira vez, deixássemos de olhar Maria como ícone e a ouvíssemos como mulher? O que se revela é menos um exercício de fé do que uma jornada íntima, marcada por contradições, silêncios e confrontos éticos que reverberam até hoje.
O longa estabelece desde o início sua intenção de escapar à linearidade catequética. Em vez de repetir os evangelhos em ordem cronológica, constrói um fluxo narrativo que opera por interseções emocionais. A infância no templo, os encontros com Ana, a figura quase constante do anjo Gabriel, tudo isso não configura um mosaico — termo inadequado aqui — mas uma cadeia sensível de experiências que deslocam Maria do altar e a inserem num tempo vivo, pulsante. É nesse ponto que a presença de Lúcifer se torna menos uma provocação e mais um recurso dialético fundamental. Quando ele pergunta o que motiva Deus a lançar uma criança em meio à violência dos homens, o filme se desarma da neutralidade e convida o espectador ao abismo: haverá alguma lógica no sofrimento imposto por um plano divino?
Essa inquietação perpassa cada escolha estética e narrativa. Interpretada com sutileza e potência por Noa Cohen, Maria ganha contornos distantes da idealização comum. Ela hesita, se espanta, sente medo. Sua trajetória, da consagração infantil à maternidade forçada, é uma curva de sobrevivência, em que o sagrado não elimina a dor, apenas a torna mais complexa. A relação com José, o exílio forçado, a perda do pai, tudo é retratado como parte de um cotidiano dilacerado pela incompreensão — não apenas da sociedade, mas da própria vontade divina, que se revela com violência e exige obediência sem explicações.
Há um mérito particular no modo como o filme tensiona os episódios bíblicos sem jamais os desrespeitar. A concepção antes do casamento, por exemplo, não é tratada como milagre glorioso, mas como dilema brutal. Ao não adiar o milagre até uma união oficial, o roteiro escancara a violência social que recai sobre Maria. Ela não é apenas vítima de um sistema patriarcal, mas de um esquema teológico que exige silêncio e sacrifício como prova de fé. Essa desconstrução, longe de negar a tradição cristã, a amplia: devolve à narrativa o que a devoção institucional muitas vezes retirou — o conflito.
O antagonista encarnado por Anthony Hopkins é menos um vilão de fábula e mais um retrato da paranoia diante do desconhecido. O rei que exige a cabeça do Messias e, ao mesmo tempo, se recusa a aceitar o mistério de sua existência simboliza um poder que não tolera exceções. Seu medo não é da profecia, mas da possibilidade de perder o controle. Nesse sentido, “Virgem Maria” não se limita ao terreno espiritual: é também um filme sobre política, sobre a relação entre fé e poder, submissão e resistência.
O longa constrói uma ambiência coerente com sua proposta. A direção de arte recria um Oriente Médio ancestral sem cair no exótico, investindo em tons terrosos, luz natural e figurinos que parecem usados, vividos, como se carregassem memória. Quando a computação gráfica tropeça — o que acontece em breves instantes —, o peso simbólico da cena compensa a falha técnica. A montagem, por sua vez, evita o ritmo solene que costuma marcar dramas religiosos e aposta numa fluidez que alterna contemplação e urgência com equilíbrio raro.
A força do elenco sustenta a imersão. Cohen entrega uma protagonista de rara densidade, com olhos que carregam perguntas sem resposta. Hopkins, ainda que por vezes beire a caricatura, domina com autoridade o papel de um rei em ruína. O restante do elenco contribui sem deslizes para manter a integridade do universo proposto, oferecendo nuances que reforçam o ponto central do filme: ali não se trata de mitos, mas de seres humanos às voltas com destinos desproporcionais às suas forças.
A divisão entre os que exaltam o filme e os que o rechaçam é reveladora. A acusação de heresia, vinda de setores mais conservadores, escancara o desconforto diante de uma arte que escolhe perguntar ao invés de doutrinar. Ao explorar lacunas da história bíblica com imaginação e coragem, “Vire Maria” não trai as escrituras — reinventa sua escuta. E ao fazer isso, convida tanto crentes quanto céticos a repensar a experiência da fé. Não como certeza, mas como caminho tortuoso, atravessado por medo, desejo e amor.
O que resta não é uma conclusão, mas uma convocação. O filme não oferece redenção fácil nem confortos espirituais instantâneos. Ele propõe algo mais incômodo e verdadeiro: que dizer “sim” ao sagrado talvez signifique aceitar o absurdo, sustentar a esperança em meio ao colapso e continuar caminhando mesmo quando tudo o que se ouve do céu é o silêncio. “Virgem Maria” não quer evangelizar. Quer humanizar. E ao fazer isso, toca um ponto cego das narrativas religiosas: o peso que é acreditar sem garantias. Poucos filmes têm a coragem de olhar a fé por esse ângulo. Menos ainda conseguem fazer disso uma experiência que, uma vez vista, se recusa a ser esquecida.
★★★★★★★★★★