Comédia francesa com Vincent Cassel acaba de chegar à Netflix Divulgação / Netflix

Comédia francesa com Vincent Cassel acaba de chegar à Netflix

Há algo de profundamente irônico em observar um império desmoronar ao som de batidas eletrônicas. “DJ à Paisana”, dirigido por So-Me (alter ego do designer e videomaker Bertrand de Langeron), é essa observação — uma festa que persiste enquanto tudo ao redor entra em ruínas. O filme, ambientado na cena eletrônica francesa, é menos uma celebração do passado glorioso e mais um retrato ácido de uma geração que, mesmo diante do silêncio, insiste em manter as luzes acesas. Com estética pulsante e narrativa que beira o absurdo calculado, So-Me compõe um painel cínico, vibrante e inesperadamente lúcido sobre vaidade, obsolescência e a recusa em aceitar que o tempo passou.

Ao centro dessa alegoria, Scorpex — interpretado com destreza por Vincent Cassel — encarna o artista fossilizado: um DJ que não apenas vive de memórias, mas parece ter se tornado refém delas. O que em mãos menos habilidosas poderia se tornar um retrato melancólico de decadência, aqui se converte numa comédia de erros sofisticada. Scorpex é inserido, com completo descompasso, numa investigação policial surreal, onde sua suposta influência no meio musical é instrumentalizada pelas autoridades. O que emerge dessa dinâmica é uma sátira de fôlego: o ego como ferramenta estatal, a nostalgia como fachada de relevância, e a cultura de pista como teatro vazio onde ninguém mais dança de fato — apenas repete passos sem música.

A opção por embutir no roteiro elementos típicos de thrillers policiais não dilui a crítica, mas a intensifica. A missão secreta é só o pretexto para expor o quanto essa cena — antes símbolo de inovação — se tornou previsível em seus excessos. So Me, com um olhar treinado pelas décadas em que dirigiu videoclipes para ícones da música pop e eletrônica, não apenas reproduz o ambiente do clubbing francês: ele o distorce com precisão visual e sarcasmo gráfico. O resultado é um universo onde as luzes de neon iluminam a superficialidade com brilho cruel, e cada frame parece prestes a explodir em confete — não de celebração, mas de desespero disfarçado.

A figura de Vestax (Mister V), jovem talento e antagonista de Scorpex, funciona como contraponto geracional sem jamais cair na dicotomia fácil entre “velho” e “novo”. O conflito entre eles não está apenas na estética sonora, mas no modo como encaram o tempo: enquanto Vestax olha para a frente, ainda que com arrogância, Scorpex gira em círculos, como um vinil riscado. Há aqui uma crítica aguda ao mito da renovação constante — não como motor de criatividade, mas como desculpa para apagar o que envelheceu mal. Laura Felpin, por sua vez, encarna a agente Rose com o tipo de excentricidade que injeta caos e graça sem jamais perder o fio narrativo. Sua presença é o lembrete de que nesse universo ninguém é totalmente sério, mas todos levam seus delírios a sério demais.

Talvez o aspecto mais intrigante de “DJ à Paisana” seja sua capacidade de manter o nonsense sob controle. O humor, que flerta com o escracho, é guiado por inteligência cênica e timing quase matemático. Não há piadas gratuitas, nem caricaturas vazias. Cada exagero tem um alvo. Cada risada, uma consequência. E o filme, mesmo quando parece próximo de colapsar sob seu próprio excesso estilístico, encontra equilíbrio no absurdo. É como uma festa que só faz sentido quando se aceita que todos ali estão dançando para si mesmos — e não uns para os outros.

A trilha sonora é, ao mesmo tempo, cenário e personagem. Ela não acompanha o enredo, mas o comenta. As faixas transitam entre o retrô e o contemporâneo, criando tensões e ironias que expandem o discurso visual. Ao optar por uma curadoria sonora que incorpora ícones como Kavinsky, So-Me reforça sua crítica não apenas ao esgotamento de uma estética, mas à maneira como ela é reciclada infinitamente em nome da autenticidade. A música, nesse contexto, não é apenas forma — é discurso ideológico.

Mais do que uma sátira geracional, “DJ à Paisana” é uma crônica da persistência no erro. É um filme que coloca o espelho diante de uma cena que se acostumou demais a se olhar — e parou de se ouvir. So-Me, ao costurar suas referências visuais e musicais com precisão coreográfica, realiza algo raro: cria uma experiência que diverte ao mesmo tempo em que corrói. Cada batida carrega um deboche. Cada coreografia remete à repetição de um ritual que perdeu o sentido.

Se o cinema contemporâneo tem se tornado refém de fórmulas engessadas, “DJ à Paisana” rompe com essa lógica não pelo choque, mas pela inteligência de sua desconstrução. É um filme que questiona o próprio ato de existir artisticamente quando o tempo já passou — e a pista está vazia. Mas ao invés de se lamentar por isso, ele faz o que poucos têm coragem: liga o som, aumenta o volume, e transforma a ruína em espetáculo.

Filme: DJ à Paisana
Diretor: So-Me
Ano: 2025
Gênero: Comédia
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★