A polícia colocou as mãos numa mulher que pedia dinheiro nos semáforos da cidade, há pelo menos três anos. Fazia isso, supostamente, para angariar recursos ao tratamento de saúde da neta, uma garotinha portadora de uma doença neurológica crônico-degenerativa. Foi uma baita coincidência que a metessem em cana, pois, a prisão aconteceu um dia depois de questionarmos a veracidade da constrangedora situação, durante uma conversa informal dentro do carro. Fomos abordados pela pedinte, não tínhamos dinheiro em espécie, no entanto, candidamente, ela declarou que aceitava a doação na forma de PIX e enfiou um cartaz com um QR CODE enorme na cara da gente. Por sorte, o sinal verde abriu e tocamos em frente sem cair no golpe.
Comovente, à primeira vista, a mulher caminhava sorridente entre os automóveis carregando um banner com a foto da menina caquética. Pelo que se sabe até o momento em que redijo a droga dessa crônica, a criança existe de fato, contudo, reside com a mãe noutro Estado. A embusteira do semáforo não guarda nenhum grau de parentesco com elas, mas, de alguma forma que a investigação policial ainda vai elucidar, as vigaristas fizeram uma espécie de trato, de parceria, de associação criminosa, pois dividiam entre si o dinheiro das doações.
Não há muito o que dizer ou escrever sobre esse execrável simulacro de altruísmo, o qual, de acordo com as autoridades policiais, constitui-se como crime de estelionato qualificado, ao explorar de forma degradante a imagem de uma criança portadora de uma moléstia incurável. Definitivamente, por mais que tergiversemos em contrário, resta comprovado que o ser humano não tem conserto. Quando se imagina que nada de pior poderá suceder, eis que somos surpreendidos por mais um duro golpe contra a dignidade humana, a minar a nossa já combalida saúde mental.
Picaretas da mendicância não são, exatamente, uma novidade. Nos meus tempos de meninice, lembro-me perfeitamente bem de cruzar, inúmeras vezes, por uma falsa mendiga que fazia ponto numa movimentada avenida do centro da cidade, supostamente, acometida por um repugnante cancro na perna. Soube-se, mais tarde, que a falsária afixava um bife de carne bovina na canela, a fim de simular uma ferida aberta.
Sem forçar muito o tico-e-o-teco, surge também na minha memória de veterano a persona non grata de uma senhorinha que mendigava numa praça movimentadíssima, sentada numa cadeira de rodas, com as pernas enfaixadas por ataduras, como se portasse uma espécie de aleijão que a impedia de deambular. Investigada pela inteligência policial, a trapaceira foi flagrada levantando-se, como por milagre, enfiando a cadeira no porta-malas de um carro e cascando fora com o dinheiro surrupiado dos cidadãos condoídos.
Miséria social é uma triste realidade que se apresenta de forma ainda mais inconcebível em tempos de web, IA, big techs, etc. Não bastasse a vexaminosa pobreza que ainda vigora em pleno século 21, continuamos a nos deparar com usurpadores que não se melindram em faturar, ilicitamente, tirando proveito da desgraça alheia. Assim fazem os embusteiros ao forjar doenças, ao alugar crianças de colo para comover, ludibriar e arrancar trocados de “otários” que circulam pelas grandes cidades.
Não somos otários. Somos movidos, muitas vezes, pelos rompantes de fraternidade. Nada contra os indivíduos marginalizados, socialmente desfavorecidos, que defendem a própria subsistência vendendo balas e bugigangas nos semáforos Brasil afora. A necessidade faz o sapo pular. São frutos do desespero e cada qual se vira como pode. São situações bem diferentes dos ardilosos que se valem dos mais degradantes artifícios para enganar as pessoas de boa fé, em sua sanha inescrupulosa pelo dinheiro. Numa escala absurda de insultos à dignidade humana, tais meliantes de baixo calão possuem uma índole tão execrável quanto os criminosos do colarinho-branco, que subjugam o país por meio de negociatas e falcatruas, numa histórica e reincidente prática de corrupção que atinge desde os mais singelos rincões brasileiros, até os nauseantes meandros do poder em Brasília. Pouca gente sabe disso, mas esses, sim, são os verdadeiros otários.