Deliciosamente leve e adorável: comédia europeia na Netflix é melhor que terapia Aliocha Merker / DCM Pictures

Deliciosamente leve e adorável: comédia europeia na Netflix é melhor que terapia

Desde o primeiro olhar, “O Despertar de Motti” convida o espectador a encarar um dilema que ultrapassa a comédia: como escapar de uma identidade herdada quando até o humor é vigiado pela tradição? Ao alçar a trajetória de um jovem judeu ortodoxo na Suíça à condição de tragicômico espelho cultural, o filme se ancora em ironias familiares, tensões religiosas e disputas silenciosas por autonomia. A obra não busca piedade ou escárnio, mas um incômodo produtivo — aquele que nasce do riso entrecortado por reconhecimento e angústia. O riso, aqui, não redime: desarma.

A estrutura narrativa se apoia na quebra da quarta parede como dispositivo de cumplicidade: Motti se dirige diretamente a quem assiste, explicando o roteiro quase automático da vida que se espera dele — nascimento, ritos, casamentos arranjados, multiplicação familiar e morte. Esse roteiro, no entanto, não é seguido com docilidade. O que há é uma resistência silenciosa, muitas vezes disfarçada de apatia ou sarcasmo. Motti não clama por revolução. Ele negocia a própria sobrevivência subjetiva em um sistema que o encurrala com afeto sufocante e expectativas blindadas por dogmas.

A figura materna ocupa o centro gravitacional dessa opressão velada. Judith, encarnação da autoridade disfarçada de zelo, transforma a busca pelo casamento ideal do filho em um teatro de manipulação emocional. O que em outras culturas seria apenas um constrangimento social, ali se transmuta em vigilância espiritual. O texto não sugere que essa violência simbólica seja exclusividade de um grupo religioso: ao contrário, evidencia como a instrumentalização do amor parental pode ser uma prática transreligiosa, travestida de cuidado e reproduzida como norma. O que choca não é o costume em si, mas a familiaridade do seu abuso.

Em meio a esse cenário, Motti tenta sabotar o sistema de dentro. A farsa do noivado com Michal é menos uma rebelião e mais um gesto desesperado de pausa. Ambos partilham o cansaço, o enfado de serem mercadorias num mercado matrimonial velado por tradições. O nojo que Motti sente pelas pretendentes é, na verdade, um reflexo da repulsa que nutre pela figura materna — não no sentido afetivo, mas como arquétipo coercitivo. Laura, a estudante secular, representa o desejo por uma identidade menos vigilante. Ao contrário das pretendentes escolhidas por sua mãe, ela não o lembra de um script, mas de uma possibilidade.

A viagem forçada a Israel intensifica esse conflito. Ali, em vez de reencontrar suas raízes, Motti é lançado em uma espécie de limbo moderno, onde a religiosidade divide espaço com hedonismo e relativismo. A figura de Jael surge como um simulacro de solução: judia, sim, mas liberta da função institucional de ser “esposa”. A recusa dela em legitimar o vínculo amoroso frente à família de Motti funciona como espelho invertido da recusa dele em aderir às imposições maternas. Ambos querem experiências e não pactos. Ambos rejeitam o papel que lhes foi escrito. A diferença é que ela já se libertou do roteiro — ele ainda tenta rasurar as falas.

Essa tentativa de rasura, no entanto, cobra um preço alto. Quando decide apresentar Laura à sua família, a encenação da aceitação desmorona. Motti percebe, não sem dor, que há formas de exclusão que operam sob a superfície dos gestos. O drama não é apenas externo: a vergonha, o desajuste, o medo da ruptura total corroem seu senso de pertencimento. E nesse esfacelamento, o protagonista se vê desprovido de coordenadas. A secularização não oferece repouso, a tradição o asfixia, o desejo o expõe.

Na oscilação entre idiomas — alemão, iídiche e hebraico — o filme reforça a fragmentação identitária de Motti. Não há língua definitiva para expressar seu conflito, apenas tentativas que falham ou são abafadas. A fluidez do idioma acompanha a hesitação do personagem, mas também o convoca à invenção de uma nova gramática pessoal. Ao final, quando todas as figuras à sua volta tentaram moldá-lo, o que resta a Motti não é uma escolha ideal, mas um espaço rarefeito de decisão. E é nesse vácuo — entre as promessas da liberdade e as chantagens da herança — que se forja uma autonomia possível, ainda que precária.

Filme: O Despertar de Motti
Diretor: Michael Steiner
Ano: 2018
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★