Em um mundo que já testemunhou o colapso de impérios, revoluções de toda ordem e avanços científicos capazes de redefinir a própria ideia de existência, permanece um câncer social cuja mutação acompanha, com inquietante versatilidade, cada passo da modernidade: o racismo. Mais do que uma mazela histórica, trata-se de um fenômeno que se camufla sob os disfarces do discurso civilizado, sobrevivendo às legislações, aos tratados internacionais e ao verniz humanitário com que sociedades tentam maquiar as próprias cicatrizes. Não se trata apenas da persistência do ódio: é o consentimento tácito daqueles que, por não serem afetados diretamente, escolhem a conveniência do silêncio à responsabilidade da indignação. O que se vê é um pacto informal entre a neutralidade cúmplice e a brutalidade desinibida — um pacto que mina qualquer tentativa real de equidade. E nesse vácuo de justiça, o que se perde não são apenas as vidas negras — perde-se o potencial coletivo de uma humanidade que recusa reconhecer a si mesma como um todo indivisível.
A raiz dessa lógica perversa escapa a qualquer explicação racional. Seria cômodo atribuí-la à ignorância pura e simples, mas isso implicaria ignorar a sua estrutura engenhosamente cultivada. A crença na hierarquia racial não nasceu do acaso nem da ingenuidade: ela foi erguida com propósitos bem definidos e sustentada por séculos de conveniência moral e econômica. Uma construção retórica que mistura o medo ao desprezo, sempre manipulada conforme os ventos da história. Ainda assim, a sua refutação não exige erudição: basta a lucidez básica que qualquer criança é capaz de demonstrar antes de ser intoxicada pelos preconceitos herdados. O desafio não está em perceber o absurdo, mas em desmascará-lo diante de um mundo que insiste em normalizá-lo. É nesse cenário que surge “Cores da Justiça” — um filme que não pretende oferecer respostas definitivas, mas expõe as fissuras por onde a violência institucional se infiltra. Deon Taylor não recorre a grandes gestos heroicos: ele captura a banalidade sufocante do preconceito em sua forma cotidiana, precisamente onde ele se esconde com mais eficiência.
A protagonista do longa, Alicia West, não carrega arquétipos de heroína invencível. Ela é uma mulher marcada por tensões invisíveis, posicionada entre dois mundos que se entreolham com desconfiança crônica. Ex-militar e agora policial, sua figura incorpora a ambiguidade de quem representa a lei num corpo historicamente perseguido por ela. Desde as cenas iniciais, sua presença é questionada por todos: por colegas que hesitam em confiar, por conhecidos do passado que a veem como traidora, por cidadãos que a identificam com o opressor. Um simples patrulhamento noturno revela a complexidade desse embate. Ao se deparar com um menino à margem — literalmente jogado contra a sarjeta, portando um canivete como quem empunha um grito abafado —, ela não apenas cumpre um protocolo policial. Ela revive os ecos de uma infância que poderia ter sido a sua, diante de uma mãe que é também uma sombra de sua história pessoal. Essa breve interação estabelece, com precisão inquietante, o eixo temático do filme: o que resta de um indivíduo quando todas as estruturas ao redor contribuem para desfigurá-lo?
É entre cafés frios e piadas de vestiário que o cotidiano policial se desenrola com aparência de normalidade. Mas sob essa rotina arrastada se escondem os mecanismos de uma engrenagem disfuncional. A suposta casualidade de um plantão substituto é a peça que move o enredo rumo ao colapso. West, ainda empenhada em provar sua competência, aceita cobrir o parceiro e, sem saber, atravessa a linha que separa o dever da sobrevivência. O que ela testemunha — e filma — naquele turno não é apenas um crime. É o retrato cru da corrupção institucionalizada, encarnada no agente federal Terry Malone, que enverga o emblema da lei enquanto opera como executor de uma lógica mafiosa. O que se segue não é uma caçada hollywoodiana, mas uma tentativa desesperada de resistir, sobreviver e, acima de tudo, ser ouvida. A câmera se torna a única testemunha confiável em uma cidade onde o testemunho humano vale menos do que o fardamento que se veste.
Taylor constrói um thriller urbano que se distancia do espetáculo para mirar a tensão psicológica, e Naomie Harris empresta à sua personagem uma densidade que escapa às expectativas de gênero. Não há espaço para certezas reconfortantes: a cada esquina, a protagonista se depara com a omissão, o medo, o preconceito e o risco real de se tornar estatística. A narrativa costura reviravoltas com ritmo e sobriedade, sem jamais trair sua intenção mais profunda: evidenciar que a justiça, quando submetida a interesses de casta e cor, torna-se apenas mais uma arma na mão errada. O perigo não vem dos bandidos clássicos, mas daqueles que, protegidos pelo aparato estatal, moldam a realidade com mentiras forjadas e verdades suprimidas.
Não há redenção triunfante nem catarse narrativa. Há o reconhecimento incômodo de que, para muitos, o maior ato de coragem ainda é existir. E se a ficção aqui incomoda, é porque toca feridas abertas, sangrando diariamente nas vielas onde o medo ainda fala mais alto que a razão. “Cores da Justiça” não é um libelo — é uma provocação. Um lembrete de que, enquanto a neutralidade for o escudo dos privilegiados, cada silêncio custará caro demais.
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